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A extraordinária função transformadora da leitura

A Literatura diz a vida! Perguntam amiúde se levamos literatura para a vida ou a vida para a literatura. Confesso que não sei responder, mas sei que as palavras lidas são construtoras de seres mais completos e mais preparados.

A extraordinária função transformadora da leitura

Maria da Luz Coelho

08 de novembro de 2023

Recebi, há cinco anos, um grupo de alunos que não encontrava na leitura qualquer tipo de utilidade. Nem prazer, nem ensinamentos. O ato de ler não era mais do que uma obrigação que nos afastava e criava barreiras difíceis de ultrapassar. Estavam, então, no início do terceiro ciclo e não liam mais do que as mensagens nos telemóveis, fiéis amigos do isolamento e do entorpecimento. Recordo uns dos primeiros excertos que lhes li e do qual retiro este fantástico momento:
“ (…) mas mal chegava a casa, relia tudo em voz alta.
- Para quê?
- Para me maravilhar. As palavras pronunciadas começavam a ter existência fora de mim, tinham autêntica vida. Além disso, para mim era um ato de amor. Era o próprio amor. Sempre pensei que o amor ao livro passa pelo amor tout court.”
Daniel Pennac, Como um Romance

Assim começou a nossa caminhada pela leitura. “A literatura diz a vida!”, explicava eu como quem fala de um maná. Não foi fácil, a conquista. Por vezes, encontrei-me numa peregrinação cansada que nada ficava a dever à coragem de Sísifo. Miguel Torga serviu de âncora com os seus versos “Recomeça.../Se puderes/ Sem angústia/ E sem pressa.”

O silêncio da sala fez-me acreditar que havia salvação! E este sentir aumentou quando o mais pequeno me traz um poema de Sebastião da Gama: “Pelo sonho é que vamos”. Sim, foi precisamente isto que me motivou, juntamente com o amor à literatura.

Estava lançada a semente! Torga foi o poeta que se seguiu para calar uma chamada de atenção que me pareceu pertinente - “Em qualquer aventura/O que importa é partir, não é chegar”, contra-argumentou o mais expedito. Tinham percebido de que forma a literatura dizia a vida e o ser humano. David Mourão-Ferreira já havia mostrado isso, que a nossa existência “É uma escada em caracol/E que não tem corrimão. /Vai a caminho do Sol/Mas nunca passa do chão.” Alguns consideravam-se ainda pequenos para falar “destas coisas da vida”, como chamavam às nossas conversas mais profundas. O facto mais interessante é que começavam a gostar dos momentos de introspeção que a literatura proporcionava.

Ao longo dos anos foi notório o peso das palavras dos escritores. Foi visível a importância na construção das suas personalidades. Perceberam com Gil Vicente que há uma consequência para os nossos atos. Conheceram com Camões a grandeza de um povo. Contactaram com a mesquinhez do ser humano através de Padre António Vieira. Aprenderam a viver o dia-a-dia com Fernando Pessoa e o conceito do “Carpe diem”. “Colhe o dia, porque és ele” passou a constituir lema de vidas. Alguns passaram a acreditar que “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. D`Os Lusíadas retiram o amor à pátria, a luta do homem contra o desconhecido e o valor do reconhecimento, que chegam a expor nas suas redes sociais para mostrar as conquistas - “Quão doce é o louvor e a justa glória/Dos próprios feitos quando são soados!”. Sabem que a última palavra da grande epopeia é “inveja”. Com o Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, viram de perto até onde conseguimos ir em situações limite. O Homem é capaz das maiores atrocidades, basta olhar para a atualidade.

Ao longo dos anos de estudo, refletiram sobre a finitude da vida e o acreditar que pode haver um mundo que nos transcende e onde nos esperam. Foi Eça de Queirós que o mostrou. Entenderam o amor nas palavras de tantos poetas. Com eles, perceberam que somos frágeis, vivemos angústias, dúvidas e inquietações. Fizeram-se analíticos e críticos do mundo que os rodeia. Viram virtudes e defeitos que encaixam nas pessoas reais que com eles partilham os dias.

A Literatura diz a vida! Perguntam amiúde se levamos literatura para a vida ou a vida para a literatura. Confesso que não sei responder, mas sei que as palavras lidas são construtoras de seres mais completos e mais preparados.

Hoje, quase no final do ensino secundário, são eles que o afirmam. “Vós estis sal terrae” (Evangelho segundo São Mateus) - dizem-me alguns, inspirados por Vieira e orgulhosos de si. Hoje, lanço este mesmo repto e, nunca esquecendo o momento atual, fizeram-se influencers de leitura.

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