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A esperança no avesso do mundo

Temos assistido nos últimos anos a um conjunto de desafios que vão questionando o ambiente de relativa estabilidade em que vivíamos. Diria a expressão popular que cada vez mais temos um mundo virado do avesso. Perante este mundo ao contrário, e porque acreditamos que há sempre caminho a fazer para a reconstrução e reequilíbrio, propomos uma pequena caixa de ferramentas.

A esperança no avesso do mundo

João Valério

13 de março de 2024

Temos assistido nos últimos anos a um conjunto de desafios que vão questionando o ambiente de relativa estabilidade em que vivíamos. Diria a expressão popular que cada vez mais temos um mundo virado do avesso.

Se é certo que uma parte dos acontecimentos ocorre numa escala onde temos pouco controlo directo, ainda assim existe muito a fazer à escala individual, local e regional, onde é possível insistirmos num caminho positivo.

Parte dos fenómenos a que assistimos actualmente – política, guerra, saúde, avanços tecnológicos, economia, questões sociais e identitárias – representa pontos de viragem ou instabilidade com tal incerteza que, no seu sucessivo acumular, podem questionar se ainda existe possibilidade de esperança. Na sua mensagem de Quaresma, o Papa Francisco reflecte também sobre a contradição que tais situações representam: “Assemelha-se àquela nostalgia da escravidão que paralisa Israel no deserto, impedindo-o de avançar. O êxodo pode ser interrompido: não se explicaria doutro modo porque é que tendo uma humanidade chegado ao limiar da fraternidade universal e a níveis de progresso científico, técnico, cultural e jurídico capazes de garantir a todos a dignidade, tateie ainda na escuridão das desigualdades e dos conflitos.” [1]

Na origem destes fenómenos encontramos a pegada do afastamento e desagregação, mas também a incapacidade de conciliar realidades distintas. Massimo Cacciari faz notar como é inevitável o confronto se entendermos globalização como ocidentalização.[2] Tiziano Terzani, no seu relato de viagem “Un indovino mi disse”[3] recorda o modo como algumas civilizações asiáticas sucumbiram, na segunda metade do século XX, a uma transformação do espaço e da cultura que arrasou as referências culturais locais em favor de vias rápidas e cidades erigidas à maneira ocidental, num kitsch urbanístico e social.

Mesmo na nossa realidade mais próxima, assistimos a uma tentativa de construção de unidade sobre uma homogeneidade artificial que não existe. De modo aparentemente contraditório, desapareceram os referenciais colectivos, fragmentados nos diversos “eus”. As referências culturais de cada sociedade podem ser entendidas como um meio de interligar pontas de um tecido de malhas diferentes, mas articuláveis. O caminho da uniformização encontra um beco sem saída – pois continuará sempre a existir variedade não normalizável – e o oposto, na fragmentação das narrativas colectivas, impede a ligação destas peças soltas que compõem a manta de retalhos social.

A este contexto suficientemente complexo, soma-se a construção do indivíduo sobre uma crença nas possibilidades infinitas – tudo é possível. Não obstante a importância do sonho e da transformação pessoal de cada um, estes não devem extravasar um limiar que venha a causar desestruturação. É uma receita complexa e importa dosear esses ingredientes para orientar o sonho de modo construtivo, algo tão difícil numa época onde os limites do razoável são difusos e os limites do possível são ainda mais vagos. A desconstrução súbita de referenciais culturais e sociais de que precisamos para nos sustentar enquanto pessoas e enquanto culturas vai dando lugar uma leitura do mundo onde tudo pode ser verdade e tudo pode ser validado.

Como última pincelada na composição deste quadro analítico, as disparidades sociais que se vão vincando, fruto de circunstâncias sociais e económicas, constituem um ponto de partida para extremar posições na tentativa de sobrevivência individual, levando ao afastamento de um centro comum em direcção a margens irreconciliáveis.

Perante este mundo ao avesso, e porque acreditamos que há sempre caminho a fazer para a reconstrução e reequilíbrio, propomos uma pequena caixa de ferramentas.
Antes de mais, é essencial reconhecer e valorizar a diferença, não necessariamente para nos identificarmos com tudo (porque isso também nos desconstruiria), mas para cultivar o respeito entre partes, em diálogo que busca pontos comuns, lugares de encontro. Ao reconhecer que a diferença é inevitável e, simultaneamente, algo saudável para o equilíbrio dos povos, é possível construir espaços (físicos e mentais) que assegurem o equilíbrio entre a dimensão comum e do encontro (os lugares de ágora e de entendimento) e a dimensão individual, de diferença e identidade (os lugares da propriedade privada).

Por outro lado, há que desenvolver as comunidades, enquanto elementos sociais de agregação em torno de identidades comuns, enriquecendo a experiência humana. Estas comunidades, ao mesmo tempo que juntam iguais, inter pares, abrem também espaço ao diálogo com outras comunidades distintas, possibilitando um caminhar lado a lado na tolerância entre diferentes modos de ver o mundo.

Uma terceira ferramenta desta caixa poderia passar por caminhar em direcção ao bem estar de todos, sem excepções. A quem não o faça já intuitivamente, movido pelo simples cuidado com os outros, pode sugerir-se que o faça movido pela consciência de que as democracias vivem melhor quando todos se sentem acolhidos e suportados.

Se o mundo que se vai pondo regularmente do avesso é uma realidade, podemos pegar nessa situação e trabalhá-la de modo a fazer esse avesso um lugar criativo de esperança. Ocorre-nos o edifício da Universidade do Chile concebido pelo atelier “Elemental”. Um arranha-céus virado do avesso: em vez de ser composto pelo convencional núcleo interior em betão e fachada exterior em vidro, que resultaria muito mal no clima chileno, optou-se por inverter a lógica e criar um núcleo interior envidraçado, aberto sobre um grande vazio central, rodeado no exterior por uma fachada em betão quase opaca que protege o interior do calor por vezes tórrido. Um edifício onde o virar do avesso se constitui como condição essencial para operar uma transformação positiva.

Thimothy Radcliffe faz notar como o cristianismo nasceu numa crise de esperança, em Quinta feira Santa, onde tudo parecia ter acabado: são a “specialité de la maison”[4] dos cristãos. Podemos, por isso, seguir esse exemplo e continuar a caminhar, mesmo apesar de todas as promessas aparentemente frustradas.

Fotografia de capa do artigo: Centro de Innovación Anacleto Angelini, Universidad de Chile, Santiago, Chile, Arq. Alejandro Aravena, Elemental [C-Monster.net - CC BY-NC 2.0 Deed]

[1] “Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade”, Mensagem do Santo Padre Francisco Para a Quaresma De 2024.
[2] “La Ciudad”, Massimo Cacciari, 2010, Editorial GG
[3] “Un indovino mi disse”, Tiziano Terzani, 2018, TEA Libri
[4] “Ser Cristão Para Quê?”, Timothy Radcliffe, 2011, Paulus Editora

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