Mas por que é que, passados dois mil anos, ainda tem de ser assim, por que é que não sabemos reconhecer nos outros, principalmente naqueles que nos são mais próximos, alguma autoridade? Creio que o que se passou com Jesus é o mesmo que se passa muitas vezes nas questões laborais, sociais e eclesiais.
Domingo XIV do Tempo Comum
Muitas vezes ouvimos a expressão que só aquilo que vem do estrangeiro, importado, é que é bom. Muitas vezes vemos as mentes brilhantes de um país a prosperar no estrangeiro, como cientistas, cantores, jogadores de futebol, artistas, etc… porque, infelizmente, tiveram de atravessar fronteiras para serem reconhecidos. Infelizmente fazem jus às palavras de Jesus deste Evangelho do XIV do tempo comum: “um profeta só é desprezado na sua terra” ou como nós dizemos “Santos da Porta não fazem milagres”.
Mas por que é que, passados dois mil anos, ainda tem de ser assim, por que é que não sabemos reconhecer nos outros, principalmente naqueles que nos são mais próximos, alguma autoridade? Creio que o que se passou com Jesus é o mesmo que se passa muitas vezes nas questões laborais, sociais e eclesiais. Ninguém gosta de ser chamado à atenção por um amigo ou colega de trabalho, pois nunca lhe reconhecemos a devida autoridade, muito mais quando um colega nosso passa a ser nosso chefe. Muitas vezes estamos a recordar que, quando era como um de nós, não fazia isto ou aquilo. E o mesmo acontece na vida da Igreja e na política. É muito difícil reconhecer a alguém autoridade, muito mais quando esse alguém nos diz a verdade que não queremos ouvir. Foi o que Jesus fez ao aparecer naquele sábado. Enquanto todos se reuniam, Jesus começou a ensinar com sabedoria e, como pensavam que sabiam tudo acerca d’Ele – nome, morada, descendência e profissão – descredibilizaram todos os sinais e prodígios que Ele fez noutros locais.
Recordemos, ainda, que esta cena vem depois daquela que escutávamos no domingo anterior, ou seja, depois da cura da mulher com fluxo de sangue e da filha de Jairo. O tema que une estes dois relatos é um: a fé. No relato do domingo passado escutávamos a fé daquelas duas pessoas, estrangeiras, que não conheciam nada de Jesus, que o encontraram de passagem, não O escutaram, só ouviram dizer coisas sobre Ele e apenas depositaram a sua fé. No relato deste domingo, Jesus vai à sua terra, reúne-se no local da reunião (a sinagoga), fala com sabedoria, é conhecido de todos e não opera nenhum sinal, pois não havia fé. A fé é a condição essencial para a realização do milagre. E, por muitos sinais que Jesus fizesse, iria ser sempre o filho do carpinteiro. Às vezes temos os olhos muito vendados com o preconceito e somos incapazes de reconhecer no outro a presença de Deus. A falta de fé aqui apresentada não é apenas a negação de Deus, mas a rejeição de Jesus em nome de uma falsa ideia de Deus. No fundo, eles não queriam aceitar Jesus, não porque Ele era conterrâneo, mas porque tudo o que Aquele conterrâneo dizia fazia sentido. Sentido, esse, que eles não queriam assumir para a sua vida e, por isso, preferem-se manter na sua cegueira.
Este exemplo evangélico é ainda vivido hoje em dia. E se, muitas vezes, somos nós próprios a colocar-nos na pele de Jesus e a sermos postos em causa pelos nossos, também somos muitas vezes esses mesmo conterrâneos que não reconhecemos naqueles que estão ao nosso lado a presença de Deus. Também nós temos muitas dificuldades em fazer a destrinça entre as origens humildes, conhecidas e familiares da força das palavras e dos gestos daqueles que conhecemos. Muitas vezes também temos de ir para outras terras, estar com outras pessoas, ir a outras sinagogas para sermos valorizados e aprender a valorizar as vozes proféticas que circulam à nossa volta.