
O relato (do Evangelho deste Domingo) não é uma história tranquilizante para consolar os cristãos de hoje com a promessa de uma protecção divina que permita à Igreja passear tranquila através da história. É o chamamento decisivo de Jesus, para que façamos com Ele a travessia em tempos difíceis: “Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”
Domingo XII do Tempo Comum
Neste 12 º Domingo do tempo comum, do ano B, fala-se do mar: presente na primeira Leitura, no Salmo Responsorial e no Evangelho.
Nós somos “um país à beira-mar plantado” e isso contribuiu para definição da nossa identidade política, social e religiosa; a geografia moldou o passado, condiciona o presente e certamente influenciará o futuro do nosso país. Foi através do mar que há cinco séculos atrás, na sequência de uma opção estratégica visionária, Portugal empreendeu uma empresa onde enfrentou diversas adversidades e desafios, tendo como perspetiva final um retorno recompensador. Para além-mar havia outras terras outras gentes para evangelizar.
O mar foi na nossa História o limite a vencer. A expansão ultramarina constituía a ocasião privilegiada de concretizar o apelo evangélico de levar a mensagem cristã a todos os povos: “Um dia, Portugal foi púlpito da Boa Nova de Jesus Cristo para o mundo, levada para longe em frágeis caravelas por arautos impelidos pelo sopro do Espírito” — recordava o papa João Paulo II em Lisboa (1991), o espírito de missão dos portugueses.
Por isso nos revemos tanto nos textos deste domingo, nomeadamente no Salmo 106 e na admiração de Job na primeira leitura e dos Discípulos de Jesus no Mar de Tiberíades.
O Mar foi cantado por Camões a propósito da nossa maior gesta marítima e, na maior parte dos nossos escritores e poetas: assim o confirmamos no poema “Mar Português”, na “Mensagem” de Fernando Pessoa:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
“Passar além do Bojador, além da dor” eleva-nos ao Calvário e ao Sacrifício Redentor de Cristo. Se “no mar se espelha o céu” vencer o mar e tudo o que ele significa desde as páginas bíblicas, passando pelas odisseias mitológicas e as ficções dos autores contemporâneos é tarefa urgente de cada crente.
Ao lermos as interrogações colocadas na primeira leitura, do Livro de Job, sentimo-nos muito activos e muito comprometidos com as mesmas. Quando o ser humano pára e contempla a grandeza ao redor, muitas vezes, ainda não percebe a existência do Criador. A Bíblia diz-nos que “os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite”. (Salmo 19).
Não é preciso uma análise minuciosa para compreendemos que um simples olhar para o mar, ou mesmo para o sol, possibilita vislumbrarmos a glória de Deus. É preciso reconhecer a existência de um criador por trás de toda a maravilha da criação. É possível, ao contemplar o mar, as estrelas, o sol ou a lua, perceber a mão de um Deus por trás de tudo. Contemplamos, desse modo, a veracidade dos escritos sagrados e reconhecemos que a palavra do Senhor é infalível.
É infalível para aquele que lê a Palavra Divina e tem a plena convicção do derramamento de sangue que ocorreu no calvário.
A barca onde Jesus vai com os seus discípulos vê-se acossada por uma daquelas tempestades imprevistas e furiosas que se levantam no Mar da Galileia no entardecer de alguns dias de Verão. Marcos descreve o episódio para despertar a fé das comunidades cristãs, que vivem momentos difíceis. O relato não é uma história tranquilizante para consolar os cristãos de hoje com a promessa de uma protecção divina que permita à Igreja passear tranquila através da história. É o chamamento decisivo de Jesus, para que façamos com Ele a travessia em tempos difíceis: “Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”
Porque são tantos os nossos medos de afrontar estes tempos cruciais e tão pouca a nossa consciência em Jesus? Não é o medo de nos afundar, aquilo que nos está a bloquear? Não é a busca cega de segurança, aquilo que nos impede de fazer uma leitura lúcida, responsável e confiada destes tempos? Porque é que nós resistimos a ver que Deus está a conduzir a Igreja para um futuro mais fiel a Jesus e ao seu Evangelho? Porque é que buscamos segurança no conhecido e estabelecido no passado e não escutamos o chamamento de Jesus a passar para a “outra margem”, para semear humildemente a sua Boa Notícia num mundo indiferente a Deus, mas tão necessitado de esperança?
São Paulo, na 2ª Carta aos Coríntios lembra-nos que é “o amor de Cristo que nos impele”. Se estamos em Cristo somos nova criatura.
E concluímos: não haja medo, não haja desânimo, não haja entorpecimento: Haja o Temor de Deus, haja a força que deixou o Velho do Restelo a falar sozinho e venceu o Adamastor, haja o zelo e a gozosa aventura evangelizadora de dar novos mundos ao mundo.
