VII Domingo do Tempo Comum
O emblemático episódio do perdão de David a Saul antecipa o Evangelho de hoje e a exortação de Jesus aos discípulos, que O escutam: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos caluniam” (cf. Lc 6,27-28).
VII Domingo do Tempo Comum
Só a misericórdia rompe o ciclo da violência
“O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade”, cantamos no salmo deste domingo. Seremos nós assim também? Deixemos que a Palavra proclamada desça da mente ao coração, do coração à vida, para sermos realmente “filhos do Altíssimo”.
Ouvimos, na primeira leitura, que David tem a oportunidade de matar Saul, que encontra “deitado a dormir no acampamento, com a lança cravada na terra à sua cabeceira.” O seu companheiro de armas procura convencê-lo a matar o seu inimigo, fazendo-o acreditar que tal encontro era fruto da Providência: “Deus entregou-te hoje nas mãos o teu inimigo”, afirmou. Quantas vezes justificamos os nossos atos com desculpas parecidas? Foi assim que, ao longo dos séculos, se justificaram “guerras santas”, penas de morte, caças às bruxas e muitas outras violações do mandamento “não matarás!” David é mais perspicaz do que o seu companheiro na contemplação do mistério divino, e vê nesta coincidência, não a oportunidade dada por Deus para matar alguém, mas a oportunidade para exercer a misericórdia: “Não o mates. Quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor e ficar impune?”
O emblemático episódio do perdão de David a Saul antecipa o Evangelho de hoje e a exortação de Jesus aos discípulos, que O escutam: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos caluniam” (cf. Lc 6,27-28). Jesus substitui a expressão “ungido do Senhor” por “todos os homens”, amigos ou inimigos, familiares ou desconhecidos. E resume em curtos aforismos o que a atitude de David ilustrou e o que mais tarde, a Cruz levará à perfeição:
Só a misericórdia rompe o ciclo da violência, pois como dizia alguém, a lei do “olho por olho e dente por dente” faz apenas com que todos terminem zarolhos e desdentados. Por fidelidade ao Evangelho, o Papa Francisco ordenou recentemente a revisão do artigo do Catecismo que justificava a pena de morte em alguns casos, para a considerar sempre inaceitável.
A magnanimidade de David e de todos os que agem como ele, praticada às escuras ou à luz do dia, não fica esquecida por Deus. “Será grande a vossa recompensa.”. “Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoados.” Tão simples, afinal! E, no entanto, quão difícil, na prática, se torna esta misericórdia para com o próximo! De manhã à noite, condenamos, julgamo-nos melhores do que os outros, remoemos e relembramos com revolta as ofensas recebidas…e até repetimos: “quem não se sente não é filho de boa gente!”
“A medida que usardes com os outros será usada também convosco.” Como é a medida que usamos? Damos também a túnica a quem nos pede a capa, ou somos mesquinhos no tempo que oferecemos ao irmão, na ajuda que prestamos? Sejamos capazes de deitar no regaço do irmão “uma boa medida, calcada, sacudida, a transbordar”, medida de perdão, de tempo, de escuta, de auxílio, de generosidade a toda a prova. E o Céu será nosso.
Estava presente no estádio nacional de Maputo-Moçambique, em Setembro de 2019, no meio de uma fervorosa assembleia de mais 50 mil fiéis, quando o Papa Francisco proferiu a sua homilia sobre esta passagem do Evangelho, na conclusão da sua visita apostólica àquele país irmão, infelizmente mergulhado em sucessivos períodos de guerras e violências. Recordo a forte impressão causada e o alcance profético e programático das suas palavras no contexto daquela sociedade africana, aplicáveis sem dúvida aos cenários do nosso mundo, também em Portugal:
“…Jesus não é um idealista, que ignora a realidade; está a falar do inimigo concreto, do inimigo real, aquele que nos odeia, expulsa, insulta e rejeita como infame. Não nos convida a um amor abstrato, teórico, de discursos. O caminho que nos propõe é o que Ele percorreu primeiro, o caminho que O fez amar aqueles que O traíram, julgaram injustamente, aqueles que O mataram. Convida a amar e a fazer o bem.
E isto é muito mais do que ignorar a pessoa que nos prejudicou ou esforçar-se por que não se cruzem as nossas vidas: é um mandato que visa uma benevolência ativa, desinteressada e extraordinária para com aqueles que nos feriram. Mas Jesus não fica por aí; pede-nos também que os abençoemos e rezemos por eles; isto é, que o nosso falar deles seja um bendizer, gerador de vida e não de morte, que pronunciemos os seus nomes não para insulto ou vingança, mas para inaugurar um novo vínculo que leve à paz. Alta é a medida que o Mestre nos propõe!
Para tornar o seu convite mais concreto e aplicável no dia-a-dia, Jesus propõe uma primeira regra de ouro ao alcance de todos: «como quereis que os outros vos façam, fazei-lho vós também» (Lc 6, 31).
Com tal convite, Jesus - longe de ser um obstinado masoquista – quer encerrar para sempre a prática tão usual – ontem como hoje – de ser cristão e viver sob a lei de talião. Não se pode pensar o futuro, construir uma nação, uma sociedade sustentada na «equidade» da violência. Não posso seguir Jesus, se a ordem que promovo e vivo é «olho por olho, dente por dente». (Vatican News, 06/09/19).
Sobre o altar da Eucaristia, torna-se presente o Senhor que nos ama até morrer por nós, mesmo quando o ofendemos. Eis o “homem celeste” de que fala S. Paulo! De comunhão em comunhão, queremos segui-lo melhor. “Traremos também em nós a imagem do homem celeste”… “Ele perdoa todos os teus pecados e cura as tuas enfermidades”, canta o salmo. E acrescenta: “Não nos tratou segundo os nossos pecados.” Como é magnânima a medida que o Senhor usa para connosco! Bendiz, ó minha alma, o Senhor!