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Viver em comum começa por acolher

O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança.

Viver em comum começa por acolher
Luís Figueiredo Rodrigues
14 de junho de 2023

Nos tempos que correm, fortemente influenciados pela modernidade já superada, as tradições são postas em causa, pois crê-se que com o progresso científico-técnico o ser humano, recorrendo apenas à razão, pode encontrar em si, e de forma autónoma, a totalidade das suas motivações e, por isso, todo o conhecimento. Mas isto, que é um preconceito contra a tradição, redunda na negação daquilo que quer afirmar: não há lugar à verdade, mas sim à ideologia, com a consequente perda de liberdade e a desumanização.

O saber em si não é o que acontece primeiro, nem o fundamento último de tudo, pois o saber da possibilidade de saber, que o mundo existe e habitamos nele, que a linguagem me permite interagir no e com o mundo e falar a outros deste mundo, não se sabe nem se demonstra, antes crê-se. O que implica que, antes de qualquer operação de interação e conhecimento, o ser humano recebe uma linguagem, sobretudo da sua cultura e do seu contexto, que lhe oferece uma estrutura possibilitadora de tudo o demais. O «pensar» absolutamente subjetivo, sem recurso a nada exterior, não é possível.

Wittgenstein refere o «leito da fé» para significar tudo o que precede o indivíduo e que o sujeito terá de acolher, como condição de possibilidade da sua mesma subjetividade. Ou seja, em termos epistemológicos, o crer antecede o saber e o fazer. A confiança pessoal e a linguagem cultural são, então, a condição imprescindível para que o ser humano seja o que é, tenha um sentido e um percurso vital. Claro que somos livres: podemos rejeitar, transformar, assimilar e transmitir criativamente o que recebemos, mas só se primeiro acolhermos. A dinâmica da construção da identidade própria implica todas as dimensões do ser humano, onde a dimensão crente — que acolhe o dom oferecido — é a mais ampla, originária e fundamental.

A transmissão de verdades mais não é que o reconhecimento de que o ser humano é um ser da tradição, sendo esta constitutiva da cultura humana, na medida em que acolhe, transmite, destrói e cria tradições, ou melhor, reorganiza e faz evoluir a tradição. As verdadeiras tradições assumem um processo libertador e orientador, já que diante de uma multidão de possibilidades de perceber, pensar e agir que pode paralisar o homem, coloca-lhe à disposição determinados modelos ou guiding patterns de perceber, pensar e agir, bem como um ambiente comunitário gerador de instâncias de controle e garantes da tradição normativa, num determinado contexto cultural. Este processo é evolutivo porque constituído, em simultâneo, pelos transmissores e pelos recetores que, posteriormente, se assumem também como transmissores.

Este processo afeta a personalidade, pois o facto de um indivíduo estar numa determinada comunidade fundada na tradição, e de esta o influenciar, significa duas coisas: que a tradição possibilita o desenvolvimento da individualidade e que pode também atrofiar o desenvolvimento livre. A tradição, como destino e desafio, postula a assimilação livre e inteligente da tradição, com a consequente atitude crítica, pois a assimilação pessoal é sempre interpretação. Esta resulta da interação daquilo que é transmitido, ou ensinado, com as experiências pessoais, o que sintetiza a possibilidade de continuidade da transmissão e a sua inovação. Razão pela qual há sempre latente uma certa conflitualidade nestes processos.

É neste contexto que considera a transcendência na reflexão sobre o conceito de “casa comum” nos liberta e faz com que cada cultura particular seja criadora e libertadora de todo o sentido. A possibilidade de sermos interpelados de forma absoluta, com a constituição de uma certeza fundamental, ou uma base sobre a qual se possa construir todas as outras dimensões, é posta de parte pela maioria dos pensadores da pós-modernidade. É certo que a transcendência, porque transcende, só pode ser apreendida por cada pessoa no aqui e agora da sua história, por isso limitado e incompleto. Mas é parte integrante do acreditar a aceitação dessa finitude, que nos determina como seres de acolhimento e não como donos e senhores da realidade. O crer inaugura uma dimensão excessiva em relação à produção de sentido. Na dinâmica do crer, o sentido, mais do que produzido, é acolhido.

Na sua aceção mais genérica, crente é todo aquele que reconhece, contempla, espanta-se e aceita este estatuto de «ser mistério». Aceita que o dom originário, embora compreendido e aceite no seu âmago e nas suas consequências, nunca será totalmente captado e dominado pelos saberes humanos: apenas poderá ser acolhido como algo imerecido e, ao mesmo tempo, excessivo em relação a tudo o que sabe e faz.
O ser humano crente é o que sabe como crente, sabe o mundo e o sentido de forma crente, por isso age como crente. O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança. E porque se descobre e acolhe como dom gratuito, dá-se aos demais de forma gratuita, com fundamento fora de si — no Outro — pelo que o saber crente gera a ação caritativa, promotora da Casa Comum.

Mesa Redonda
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