Peregrinos de Esperança
O jubileu pode ser este tempo oferecido para nos pormos de novo a caminho, para aceitarmos a transitoriedade de tantas coisas em ordem ao essencial, de acolhermos a possibilidade de recomeçar, de fazer algo novo.


João Luís Fontes, RCCC
22 de janeiro de 2025
No pequeno tratado dirigido a Diogneto, pertencente às primeiras gerações cristãs, encontramos já muito clara a consciência de uma relação muito particular dos cristãos com o mundo: sem confusão, respeitando por isso a sua autonomia, mas também, e por isso, livre. Os cristãos têm, segundo esse texto, uma outra pátria, e estão no mundo como peregrinos, como que de passagem, como quem sabe que o definitivo pertence a uma outra ordem das coisas. Mas, ao mesmo tempo, esta consciência, longe de os alhear da realidade e de os fazer olhar apenas para o que há-de vir, é profundamente comprometedora. Com efeito, diz o texto que os cristãos, não se confundindo com o mundo, partilham com os seus conterrâneos a sua condição, amam e sofrem, trabalham e riem, casam, nascem e morrem com todos ou outros. Mas estão no mundo como a sua alma, sinalizando algo de maior e introduzindo, por isso, uma tensão que procura levar a realidade à sua plenitude.
Este texto, que vale a pena ser relido muitas vezes e que o próprio Concílio Vaticano II citou a propósito do papel da Igreja e dos cristãos no mundo contemporâneo, pode-nos servir de guia para o tempo que estamos a viver. Um tempo com múltiplas tensões e conflitos, cheio de contrastes e desigualdades, de regressos inesperados de sistemas políticos que reforçam os traços identitários e nacionalistas, procurando a afirmação numa lógica de oposição, de confronto, de conflito ou mesmo de anulação do outro. Muitas vezes, à custa dos mais pobres e indefesos ou dos já muito explorados recursos da terra.
Neste tempo, o papa Francisco desafia-nos a redescobrir e a viver ao ritmo da esperança, a tornarmo-nos peregrinos de esperança. Já o havia feito na sua mensagem para o tempo da criação de 2024, em vista certamente do tema que quis central para o tempo do Jubileu que se pretendia inaugurar na noite de Natal desse mesmo ano. O tema é interessante precisamente por ligar a dimensão da esperança com a experiência do caminho, do peregrinar. Ela evoca a nossa condição essencial, como se recordava já no tratado A Diogneto. Ela envolve desapego – porque se está de passagem -, liberdade – porque a nada o peregrino de apega, e procura do essencial, desse lugar onde o essencial pode ser vivido e experimentado. Ao mesmo tempo, esta consciência da nossa condição de peregrinos abre-nos ao acolhimento do outro, pois também o outro procura como eu – o sentido da vida, esse locus onde o indizível, o mistério, pode ser tocado e experimentado. O peregrinar deixa-nos também disponíveis para olhar, deixar que a realidade nos toque – da beleza da criação ao dom do outro ou ao seu sofrimento – e também a nossa. Peregrinar abre à compaixão, a deixarmo-nos tocar pela realidade do outro. Mas também à consciência da nossa fragilidade e, por isso, à necessidade que temos dos outros para sermos completos, para continuarmos a caminhar. Sermos peregrinos da esperança é, afinal, um outro nome da viver ao jeito sinodal, caminhando uns com os outros.
Neste caminho, o tesouro que transportamos é esse fogo do Deus vivo, essa luz do Evangelho que nos foi confiada, pelo nosso baptismo. Uma luz, um fogo que tem de se fazer experiência e dom descoberto e acolhido. Como o peregrino dos tempos medievais, quando o jubileu é reanimado, apostamos tudo neste caminho de procura, porque sabemos o fogo que nos habita, essa esperança que não desilude nem engana, essa confiança que radica numa descoberta fundamental: a do amor que Deus nos tem, incondicional, pleno, revelado no homem Jesus. Na sua Páscoa, aprendemos a vida dada, a confiança da entrega e a esperança de um sim de Deus, definitivo, feito de vida e amor. Um Deus que procura todos, que acolhe todos, que nos quer como povo, como família fraterna, capaz de finalmente acolher novos céus e nova terra.
Longe de nos alhear do mundo, esta esperança lança-nos na luta, faz-nos partilhar a vida de todos os dias como o lugar onde se diz o ser peregrino, onde importa sermos alma, sal e luz. É no interior dos dramas da carne humana que sofre, lembra-nos Francisco, que o nosso testemunho deve acontecer. Sempre de olhos abertos, no horizonte de Deus.
O jubileu pode ser este tempo oferecido para nos pormos de novo a caminho, para aceitarmos a transitoriedade de tantas coisas em ordem ao essencial, de acolhermos a possibilidade de recomeçar, de fazer algo novo. Tempo tradicional de descanso da terra, de se refazerem laços e de redescobrir e oferecer o perdão, este é, por isso, o tempo oportuno para os gestos concretos, que curam, que reconstroem.
Francisco lança muitos desafios à comunidade internacional, aos governos e seus dirigentes, mas também às comunidades cristãs e aos homens e mulheres de boa vontade. Neste caminho que somos chamados a fazer juntos, como reconstruir laços, sarar o que desfigura a humanidade do outro, deixar hábitos que destroem a casa onde vivemos, abrir caminho para a escuta uns dos outros? Como fazer da fraternidade uma realidade, e das nossas cidades e comunidades lugares de acolhimento e de paz?
Só o saberemos pondo-nos a caminho. Como peregrinos de esperança. Uns com os outros. Todos. Sem excluir ninguém. Escutando-nos mutuamente e partilhando o dom único que cada um transporta. Talvez assim valha a pena viver este jubileu, para além de portas e de pórticos que, na verdade, servem apenas para nos relembrar essa Porta por onde entramos para de novo sairmos, ao encontro dos que mais sofrem e estão sós. Para que também aí brilhe a esperança e a possibilidade de uma vida mais feliz e plena.
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