Celebrar o verdadeiro motivo do Natal
A continuidade do mundo em que vivemos está comprometida. Terei eu consciência de que é possível celebrar o verdadeiro motivo do Natal, mantendo um espírito de sobriedade e ultrapassando a cultura do consumo desenfreado que nos assola (ainda mais) nesta época?
Mafalda Guia
21 de dezembro de 2022
Estamos a quatro dias de celebrar o nascimento de Jesus e eis que vários pensamentos me têm inquietado nos últimos tempos, e mais ainda, neste tempo de Advento, que bem analisado, em nada é propício para uma vivência plena e serena da chegada do Salvador.
O primeiro pensamento leva-me para a dimensão do tempo. É que estamos prestes a festejar o nascimento do Deus Menino e quase a entrar num novo ano… outra vez. É fácil cair nesta “armadilha”, porque de facto a sensação (que me parece ser geral) é que o tempo passa muito rápido e, por isso, parece que foi “ontem” que celebrámos o Dia de Natal do ano de 2021. E é uma “armadilha” porque este pensamento pode-nos levar a cometer o erro de passar pelos momentos e pelas situações, ano após ano, sem nos determos no seu verdadeiro significado. A azáfama que caracteriza este tempo de espera até ao Natal e depois até à passagem para o novo ano, é muita, demasiada, ao ponto de nos tirar a atenção, a energia e a emoção de viver o tempo do Advento e, depois, de celebrar o verdadeiro Natal cristão.
O segundo pensamento leva-me para o consumo desenfreado que caracteriza esta época. Há alguns anos que me tenho vindo a aperceber que as diferentes marcas e espaços comerciais começam cada vez mais cedo a preparar campanhas natalícias, mas que nada têm a ver com o Natal. Somos de tal maneira inundados por tantos anúncios publicitários, emails com ofertas e descontos, outdoors em cada esquina das ruas por onde passamos, que é (aparentemente) impossível ignorar os presentes de Natal, sem os quais os pais, os filhos e os amigos se considerariam defraudados ou esquecidos. E, embora hoje em dia, os anúncios e campanhas estejam cada vez mais refinados, isto é, as mensagens que nos passam, mesmo tendo um teor consumista, nos impelem a estar com os outros e a fazermo-nos presentes, ao invés de dar presentes, o verdadeiro motivo de celebração é esquecido. Aliás, está completamente fora da equação de quem nos tenta vender que o Natal está (apenas) em partilhar bons momentos com a família, trocar presentes, ter uma mesa farta, montar uma árvore e colocar bonitas e deslumbrantes iluminações. Sim, o Natal pode ser também tudo isso, mas quem é Aquele que nos leva a estar com a nossa família para celebrar o Natal? É Jesus, o Deus feito homem, que nasce para nos dar a vida eterna. Ele é o motivo da nossa celebração, da nossa salvação.
O terceiro pensamento remete-me para uma questão: como conciliar este desejo natural de dar e de receber com o ideal de sobriedade para o qual o Papa Francisco nos alerta e ainda com a celebração do verdadeiro Natal? Para nos ajudar a refletir sobre esta questão, há que relembrar a Carta Encíclica Laudato si’, o texto do Papa Francisco que nos impele a mudar os nossos estilos de vida em prol do bem da nossa casa comum: “(…) o mercado tende a criar um mecanismo consumista compulsivo para vender os seus produtos, as pessoas acabam por ser arrastadas pelo turbilhão das compras e gastos supérfluos. O consumismo obsessivo é o reflexo subjetivo do paradigma tecno-económico. Está a acontecer aquilo que já assinalava Romano Guardini: o ser humano «aceita os objetos comuns e as formas habituais da vida como lhe são impostos pelos planos nacionais e pelos produtos fabricados em série e, em geral, age assim com a impressão de que tudo isto seja razoável e justo». O referido paradigma faz crer a todos que são livres pois conservam uma suposta liberdade de consumir, quando na realidade apenas possui a liberdade a minoria que detém o poder económico e financeiro. Nesta confusão, a humanidade pós-moderna não encontrou uma nova compreensão de si mesma que a possa orientar, e esta falta de identidade é vivida com angústia. Temos demasiados meios para escassos e raquíticos fins. (…) Mas nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto. São capazes de se olhar a si mesmos com honestidade, externar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade. Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações.”
“Menos é mais”: nunca esta expressão fez tanto sentido. Regressar a uma vida simples, agradecer as possibilidades que nos são oferecidas, desfrutar dos encontros com a família e os amigos, ter tempo para conversar sem pressa, servir os outros, contactar com a natureza, rezar, viver o sacramento da eucaristia … Tudo isto é caminho para saborearmos mais e vivermos melhor cada momento, combatendo a aceleração dos ritmos de vida, tão prejudiciais para uma escuta ativa dos outros, para uma atenção à natureza e à casa comum.
Viver o Natal é fazer uma viagem de regresso às raízes da nossa fé, através de uma atitude interior de grande humildade – como o ambiente em que Jesus nasceu. No centro do Natal não está apenas uma doce e dramática história familiar, explorada pelo consumismo, de um casal que procura hospedaria para o Filho de Deus. No centro do Natal reside o mistério da fé, em que Deus Se veste da fragilidade humana para a salvar. E a vida humana não teria sentido se Cristo Salvador não tivesse encarnado e redimido a Humanidade. Aqui está o verdadeiro significado do Natal, que nem sempre é fácil descobrir no meio de tantos slogans natalícios tão apelativos.
Um Santo Natal.