«SOMOS TODOS CAPITÃES»
O 25 de Abril e a Democracia Portuguesa
E eu estava lá!... No 25 de Abril
Como de costume, liguei o meu pequeno transístor ao “Radio Clube de Moçambique” para ouvir as últimas notícias sobre os acontecimentos do dia. Qual não foi a surpresa ao ouvir a notícia de uma revolução em Lisboa levada a cabo pelas Forças Armadas.
Pe. José Alves, CM
Eram 22 horas do dia 26 de abril de 1974. Depois da preparação das aulas do dia seguinte, dispunha-me para o meu sono tranquilo e repousante. Como de costume, liguei o meu pequeno transístor ao “Radio Clube de Moçambique” para ouvir as últimas notícias sobre os acontecimentos do dia. Qual não foi a surpresa ao ouvir a notícia de uma revolução em Lisboa levada a cabo pelas Forças Armadas. Surpresa não tanto pelo sucedido, pois se previa, mais tarde ou mais cedo, que algo viria a acontecer, devido a todo um historial passado que despertava, mal-estar, efervescência política e interrogações quanto ao futuro…, mas surpresa, sobretudo, por ter sido divulgada em território moçambicano, mais de 24 horas após o acontecimento. Parece que o Governador, Eng. Pimentel dos Santos, terá proibido a sua divulgação e mandado encerrar o aeroporto Gago Coutinho, reaberto posteriormente devido a uma intervenção da força aérea.
O acontecimento tornou-se o centro das nossas conversas lá em casa entre professores e alunos, ainda sem se saber que orientação iria tomar; mas no horizonte era a independência do território que se vislumbrava e se esperava. Estávamos a pouco mais de um mês dos exames… Professores e alunos estavam focados no resultado que não deveria desmerecer do de outros anos, tido sempre como o melhor resultado do Liceu António Enes, hoje Francisco Manyiang.
Com os alunos em férias (o calendário escolar era idêntico ao de Portugal), o Seminário era uma verdadeira “Tebaida”. Nas notícias pairavam rumores de movimentações de partidos, uns a emergir da semiclandestinidade, outros a aparecer pela 1ª vez.
Tal como notou a historiadora Amélia Souto (2011), “entre maio e julho, foram criados cerca de 27 partidos e organizações políticas”, que defendiam, por sua vez, diferentes soluções para o impasse político que se vivia em Moçambique: desde a criação de um estado federado independente, passando por grupos que defendiam exclusivamente os interesses dos negros ou dos brancos. Existiam ainda alguns que estariam associados a antigas estruturas do Estado Novo, tais como a Frente Comum de Moçambique (FRECOMO) de Joana Simeão; outros, por sua vez, olhariam para os casos rodesiano e sul-africano como modelos para uma possível “independência branca à Ian Smith”, como parece ter sido o caso da Frente Independente de Convergência Ocidental (FICO).
Paralelamente, desde junho, há conversações informais entre o Governo Português e a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) que terminam com a reunião de 5 a 7 de setembro em Lusaca, e a assinatura do que ficou para a história com o nome de “Acordos de Lusaca” em que o Governo Português reconhecia a Frelimo como única representante do Povo moçambicano para quem se exigia a transferência de poderes sem qualquer consulta popular.
Em protesto contra a assinatura destes acordos, há o assalto e o controlo das instalações do Rádio Clube de Moçambique por um grupo constituído por elementos que se opunham à Frelimo, mas sobretudo por elementos de origem colonial. Do dia 7 ao dia 10 foram 3 dias de euforia descontrolada para uns, e de pânico e terror, para outros.
Uma multidão da chamada cidade do caniço invade cidade e há confrontos que provocam mortes de número incalculável, sobretudo entre essa gente anónima. Isso só terminou com a intervenção do exército que tomou de assalto o Rádio Clube cujos ocupantes se puseram em fuga.
Destes três dias, ficou a morte e o medo contra tudo e contra todos, alimentado pelos boatos, a correr de boca em boca e alimentados pela imaginação…. À pacata vila da Namaacha, começaram a chegar, nessa tarde, alguns desses boatos de que “eles”, e ninguém sabia dizer quem, se dirigiam para lá. Espalhou-se o pânico entre os vários colégios e casas de formação religiosa. Ao seminário chegaram a irmãs vitorianas tolhidas de medo: a casa delas ficava num lugar isolado, sem vizinhança e era um rés do chão. A solução foi trazerem tudo o que lhes era necessário e passarem a noite numa das camaratas do primeiro andar. As das outras instituições, embora mais no centro da vila e em casas de 1º andar, também ficaram de vigia toda a noite. Pitoresco, se não fosse trágico, o facto de uns senhores (de barbas, era moda) já de noite, resolverem ir ao seminário pedir alojamento (eram antigos alunos e conhecidos do P. Rodrigues) porque os autocarros não funcionaram no regresso ao Maputo devido aos distúrbios daquele dia. As irmãs lá do primeiro andar entraram em pânico: já estão aí!, pensavam. O P. Rodrigues, vigilante toda a noite, lá foi explicando às irmãs que eles eram também umas vítimas dos distúrbios. Não tiveram autocarro para regressar à cidade… E precisavam de dormir. Aos senhores, explicou-lhes que o único lugar que tinha era uma sala de aulas onde poderiam repousar com uns cobertores porque para o primeiro andar não convinha: as irmãs, e as jovens que levaram com elas, morreriam de susto. Tudo se resolveu porque uma irmã desceu falou com os senhores e, assim, levou a tranquilidade à camarata. O P. Rodrigues é que não dormiu durante toda a noite. Atento, para detetar sinais de alarme que felizmente nunca soaram.
Entretanto, no cumprimento dos acordos de Lusaca, constituiu-se o Governo de transição, empossado a 20 de setembro e chefiado por Joaquim Chissano, com ministros nomeados pela Frelimo e pelo Governo português, representado pelo alto-comissário, almirante Vítor Crespo. Teria sido uma transição ordeira e pacífica se não fosse um desaguisado entre tropa da Frelimo e um grupo de comandos do exército português que levou a um tiroteio que causou a morte a pelo menos 48 pessoas indiscriminadamente. No dia seguinte, um comunicado conjunto do primeiro-ministro e do alto-comissário terminava dizendo que “esses agitadores, negros e brancos, serão castigados severamente”. Mas para contar este episódio mais indicados seriam os nossos colegas P. Ornelas e José Carlos. Surpreendidos pelo fogo cruzado na baixa da cidade, tiveram de se esconder atrás dos carros e cada um tentar escapar às balas. A porta de uma instituição bancária abriu-se para acolher e proteger todos os que se aglomeravam em frente, entre os quais o P. José Carlos. Felizmente para eles tudo terminou em bem. Passado o tiroteio e o susto, reencontraram-se, duas horas depois, já a caminho de casa.
Menos sorte, ou mais azar, teve o nosso confrade, P. Barros. Na tarde desse mesmo dia 21, quando regressava do aeroporto, onde tinha ido despedir-se de uns amigos, foi surpreendido por umas pedradas atiradas aos carros que por ali passavam. A viatura em que seguia foi atingida por uma dessas pedras de tal dimensão e arremessada com tal violência que não só estilhaçou o para-brisas do carro como lhe partiu os ossos da mão direita com que protegeu a cabeça. Ainda bem que funcionou o seu instinto defensivo, caso contrário ter-lhe-ia sido fatal.
Com vista ao novo ano letivo, houve uma grande reunião de professores para preparar textos adequados à nova situação política. O Seminário esteve presente e eu participei no grupo de professores de português. Era necessário elaborar uma espécie de “Seleta Literária” para uso dos alunos. Foi-nos apresentada uma proposta com textos de “grandes e ilustres escritores”, devido à sua luta contra o colonialismo e pela dignidade dos povos oprimidos e explorados: Fidel Castro, King Il Sung, Mau Tsé Tung, Ochimin; Che Guevara, Samora Machel, Craveirinha, Bernardo Onwana… No meio de umas largas dezenas de professores, lembro-me de tomar a palavra, começando por elogiar os critérios da escolha mas desejando que outros autores, também eles grandes lutadores pela dignidade dos povos contra o colonialismo, integrassem esta lista de autores: Nelson Mandela, Ghandi, Camilo Torres, Luther King… Face a um pequeno murmúrio de aprovação dos participantes, levantou-se um jovem quase imberbe, na mesa da presidência, numa atitude frenética, não fosse tal sugestão ser aprovada, dizendo que eram pessoas muito respeitáveis mas cujas “ideias não se enquadravam no nosso plano para o futuro de Moçambique”. Estranhei a expressão “nosso plano” e perguntei quem era aquela pessoa que fez a sua a intervenção da mesa que presidia àquele grupo de trabalho. Que era membro da UDT e de outros partidos da extrema-esquerda mandados pelos seus dirigentes para que não houvesse desvios ideológicos… Em conversa de corredores ia se comentando sobre o rumo que tudo parecia tomar: radicalização marxista-lelinista, como mais tarde se veio a confirmar oficialmente no 3º Congresso da Frelimo. Mas isso, que pode ser objeto de outra crónica, já está fora do âmbito que me foi proposto: “o 25 de Abril por quem estava lá”.