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«SOMOS TODOS CAPITÃES»

O 25 de Abril e a Democracia Portuguesa

Desfolhando a Liberdade - memórias do 25 de Abril de 74

Claro que vale a pena ser livre, porque a Liberdade e a Democracia são sempre o ponto de partida para iniciarmos ou reiniciarmos uma longa caminhada rumo àquela sociedade com que sonhámos nos verdes anos e que ainda continua tão longe.

Desfolhando a Liberdade - memórias do 25 de Abril de 74

José Braz

Em abril de 1974 tinha 18 anos e preparava-me para terminar o então 7º ano do liceu e matricular-me num qualquer curso superior, condição sine qua non, para, na altura certa, pedir adiamento do serviço militar obrigatório. Era esse o grande e único objetivo que me era imposto em termos familiares.

Durante a minha juventude, pertenci a um grupo de jovens na paróquia do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa e, a partir dos 16 anos ganhei uma certa consciência social e política. Alguma coisa tinha de mudar neste país, que todos reconhecíamos pobre, analfabeto e triste. Lisboa era cinzenta, como cinzentos eram os lisboetas. Estava rodeada de miséria, de imensos bairros de lata. Tudo chegava a Portugal com meses ou anos de atraso. As ideias, as modas, a música, os livros. Ou não chegavam mesmo. No interior do país, as mulheres e as crianças andavam descalças e a liberdade de expressão era uma miragem. Imperava o medo e a autocensura.

Pertenci às Conferências de S. Vicente de Paulo na referida paróquia e, recordo-me de uma deserção coletiva de jovens, em veemente protesto contra uma certa ideia de “caridadezinha” defendida por uma certa hierarquia clerical, mancomunada com o regime.

Admirávamos a coragem de D. António Ferreira Gomes, do padre Felicidade Alves, cujas homílias idolatrávamos e do padre Abel Varzim que levou prostitutas de Lisboa em peregrinação a Fátima, escandalizando a moral cediça, dominante. Colávamos posters de D. Hélder Câmara ao lado da icónica fotografia de Che Guevara do Alberto Korda. Ouvíamos Francisco Fanhais. Enfim… éramos um sério problema para a paróquia. Problema que para muitos de nós, iria acabar da pior maneira.

Mas aquela 5ª feira, dia 25 de Abril de 1974, alteraria o rumo da História deste país e, também, o rumo das nossas vidas.

Recordo que nesse dia, saí de casa pela manhã, e como habitualmente calcorrearia meia Lisboa, ora a pé, ora à pendura do elétrico, para chegar ao Liceu Passos Manuel. Ao velho Passos onde aprendi, no 1º ano a jogar ao berlinde, no 7º a adorar Fellini e, nos 6 anos do meio, a atirar pedras, pedaços de giz, apagadores e outros instrumentos didáticos mais pesados às viaturas da GNR que entravam e saíam no Comando territorial contíguo às traseiras do Liceu. Toda a miudagem agia de igual modo, apenas porque sim, porque dava gozo afrontar a autoridade.

Mas neste dia o meu destino não seria o Liceu.

Logo no Rossio, já acompanhado de alguns condiscípulos, apercebemo-nos de inusitados movimentos de viaturas militares, carregadas de soldados armados de G3, seguidas de magotes de populares que, em louca correria. gritavam vivas à liberdade.

Os militares sorriam e saudavam a população. Traziam cravos vermelhos enfiados nos canos das espingardas e, portanto, tudo o que víamos só podia ser coisa boa. Juntámo-nos à multidão e tive o privilégio de - calçada do Carmo abaixo, rua do Carmo acima – viver, por dentro, esse inesquecível dia em que o dique que continha o medo e a tristeza se rompeu de alto a baixo e a liberdade e a alegria inundaram toda a cidade. Momentos de fulgor e de felicidade que para sempre ficaram guardados na minha memória.
Depois vieram os anos loucos da Faculdade de Direito. Os excessos, os sectarismos os radicalismos e, até, alguma violência, mas também a utopia, o idealismo, a solidariedade e a amizade que fica para a vida.

Na paróquia as coisas também mudaram. O espírito do Vaticano II, uma década depois, chegou e ganhou raízes, permitindo que os sinais dos novos tempos e as grandes mudanças do mundo contemporâneo fossem alvo de reflexão à luz da Palavra de Deus. Continuávamos a ver, a ouvir e a ler, mas agora em liberdade! Em liberdade sonhámos com o Homem Novo e transformámos a “caridadezinha” em solidariedade, compromisso, interajuda e participação.

Mesmo fora de qualquer juventude partidária, fiz parte de um bando de loucos sonhadores que conseguiam ver o paraíso terrestre, a sociedade perfeita, a cidade de Deus, ali ao virar da esquina.

Mas a vida corre célere e, quase sem dar por isso, passei do sonho à realidade.

Trabalhei mais de três décadas no sistema de justiça criminal. Servi o país e a comunidade. Sempre do lado dos cumpridores e das vítimas, já não no éter do sonho, mas com os pés bem assentes numa dura realidade que a investigação criminal e a aplicação da lei penal é, e sempre será.

Lutei por um mundo melhor e mais decente.

Combati o bom combate.

E tive oportunidade de comparar, por dentro, o passado e o presente, percebendo o quanto as coisas mudaram no domínio do respeito pela dignidade da pessoa humana, da observância de direitos liberdades e garantias mínimas, próprias de um Estado de Direito que hoje somos, não obstante o imenso que continua por fazer num Sistema que persiste em ser, nalguns aspetos, obsoleto e gerador de ineficiência e de injustiça. Hoje, já aposentado, olho em meu redor e vejo uma sociedade hedonista, materialista, que relativiza valores, onde se confunde felicidade e sucesso com dinheiro, onde o ter se sobrepõe ao ser, onde o individualismo impera, onde a miséria e a desigualdade persistem, onde a solidão e a incapacidade de nos relacionarmos de forma sã e estável com o outro, empurra muitos de nós para um animalismo inconsequente.

Pergunto-me então se valeu a pena. Se valeu a pena acabar com a guerra colonial, com os delitos de opinião, com os presos políticos, com a censura, com as taxas de mortalidade infantil e de analfabetismo altíssimas, com os bairros de lata que cercavam as grandes cidades, com as prisões arbitrárias, com a desumanidade.

E a resposta é: sim! Claro que valeu a pena! Claro que vale a pena ser livre, porque a Liberdade e a Democracia são sempre o ponto de partida para iniciarmos ou reiniciarmos uma longa caminhada rumo àquela sociedade com que sonhámos nos verdes anos e que ainda continua tão longe.

Nós católicos que temos Fé e Esperança noutra Vida, temos o dever de continuar a caminhada aqui e agora, nesta Vida, pela ação e pelo exemplo. Com ouvi, há muitos anos dizer o P. João Resina: a Fé só vale na medida em que seja capaz de transformar as relações humanas.

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