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«SOMOS TODOS CAPITÃES»

O 25 de Abril e a Democracia Portuguesa

Abril: três "pê" e mais um de política

Lisboa foi o destino desejado por muitos caboverdianos, quase uma imagem de cidade da promessa, mas que representava a dor da saudade de muitos que partiam e de outros que não arriscavam porque a idade já não os impulsionava.

Abril: três "pê" e mais um de política

João Pedro Chantre

No início desta Quaresma deparei-me com esta proposta de programa:
"Os três “P” para nossa Quaresma: o que eu tenho de fazer é uma coisa pequena, não é uma coisa grande; o que eu tenho de fazer é uma coisa pessoal, não é uma coisa para os outros; e o que eu tenho de fazer é uma coisa possível, Deus não me pede o impossível, Deus pede-me coisas possíveis. Boa Quaresma." — Cardeal D. José Tolentino Mendonça

Senti, na altura, que poderia colocar nesse meu programa um quarto “pê”, o “pê” de política. Não só porque nesta Quaresma tenha ocorrido uma importante campanha para as eleições legislativas (10 de março de 2024), no ano em que celebramos os 50 anos da revolução do 25 de abril de 1974, mas porque a política é também uma das minhas paixões.

Não sei de onde, nem como explicar este meu gosto pela política, embora nunca me tenha levado sequer a pertencer a uma lista para a associação de estudantes e muito menos a fazer parte de uma qualquer juventude partidária. Por outro lado, lembro-me, sim, de a minha avó Martina me dizer: “Menin bô é muito político!”, no nosso crioulo profundo da ilha de Santo Antão, em Cabo Verde, quando eu me envolvia em longas discussões com as minhas primas sobre o direito das nossas propriedades. São sempre as queridas avós a fazerem-nos estas leituras quase de destino, como quando estendemos a mão para que nos leiam as linhas do nosso futuro.

Se por um lado apreciei sempre, como espetáculo de bom teatro, a política partidária, por outro lado, preferi a participação em associações locais de cidadãos, desde os Bombeiros Voluntários, às associações desportivas e recreativas e culturais (bandas filarmónicas e grupos etnográficos). Ficou-me uma pequena participação num programa de música africana, numa rádio local, na altura ainda “rádio piratas”.

Em 1974 estava em Cabo Verde, onde nasci em 1968, e de onde vim a sair, para Portugal, em setembro de 1976. Às vezes ainda olho para a história e constato o quanto 1976 era tão próximo dessa data histórica do 25 de abril de 1974. Lembro-me, talvez entre os anos de 1973/74, de ouvir a minha avó e as minhas tias a falarem baixinho, no quintal da nossa casa, com receio de que alguém estranho as ouvisse e fosse contar o que tinham dito, ou até o que não tinham dito. Hoje, reencontro-me no refrão da canção Velha Chica, do saudoso cantor angolano Waldemar Bastos: “Xê, menino, não fala política; (Não fala política) não fala política (xê, menino)”, um quadro do tempo da ditadura.

Tenho a imagem guardada da primeira vez que vi uma bandeira nova içada no largo da "Câmara Municipal" da nossa vila (à época não existiam ainda com essa organização e designação). Era a bandeira de um país novo, a bandeira da República de Cabo Verde, que para mim era o mesmo país, pois não conhecia outro, embora ainda não o fosse. A língua que falávamos, a minha língua materna, era o crioulo, era o nosso crioulo profundo da Ilha de Santo Antão (como comentam os das outras ilhas). Por outro lado, lembro-me de ouvir falar português e da caligrafia impecável da minha avó e do meu tio D´jone. Um certo dia, ela pediu-me para ir levar um recado ao Sr. Engenheiro; tratava-se de um pedido de minuta para uma carta de requerimento de residência em Portugal. Achei tão estranha aquela palavra: mi.nu.ta.

E a língua, o português, foi um dos meus primeiros desafios ao chegar a Alcobaça, onde estava a minha família (como se fosse uma outra Lisboa. Estávamos em setembro e as aulas começavam em outubro, eu tinha quase de fazer um curso intensivo de português a par de todas as outras adaptações (culturais, sociais, gastronómicas, etc.). Todos eram estranhos e eu era estranho para todos. Recordo aquela sentença, dos primeiros dias em Portugal: “A partir de hoje não falas mais crioulo, é tudo em português! Na escola tens de entender tudo o que te dizem”.

Fui muito bem acolhido na casa onde a minha mãe trabalhava e na escola tive a melhor professora, a Dª Maria da Glória, que soube tão bem acolher-me e facilitar a integração. De vez em quando, pedia-me para cantar uma canção de Cabo Verde e uma outra vez até dancei. Quando o tema das composições era livre eu inventava histórias em que os meus amigos de Cabo Verde eram os protagonistas. Na sala de aula a adaptação foi muito facilitada pela professora (arrisco a dizer que tinha o dom da pedagogia aliado à doçura da palavra). No entanto, no espaço do recreio a adaptação aconteceu de forma mais lenta e com algumas tensões, mas superadas com a convivência que o tempo foi proporcionando. Lembro-me de que não seríamos mais de 5/6 alunos africanos, na Escola Primária de Alcobaça. Com o tempo, perdi o falar crioulo, guardo a memória e o canto de algumas mornas e coladeiras, e o hábito de dançar passou a exercício apenas das festas espaçadas de verão. Diria hoje, que foi dado espaço e voz às minhas diferenças e que isso teceu uma crescente proximidade entre os alunos daquela turma de cerca de 30 alunos, no ano letivo de 1976/77.

Portugal era algo muito distante e indefinido, talvez por isso ouvíamos sempre dizer “Lisboa”, como canta em estilo de morna o Vitorino Salomé: Joana Rosa: “Ba pa Lisboa, adeus jam´bai; M´tem irmons, família pa tudo lado”.

Lisboa foi o destino desejado por muitos caboverdianos, quase uma imagem de cidade da promessa, mas que representava a dor da saudade de muitos que partiam e de outros que não arriscavam porque a idade já não os impulsionava.

“5, 5 de julho, independência”, era um dos refrões que eu trazia e pautava as minhas longas conversas de recém-chegado a Portugal, pronto a contar as novidades do fervilhar da independência de Cabo Verde (5 de julho de 1975). Havia comícios, bailes, canções novas, alegria nas ruas. As pessoas pareciam já não ter tanto medo e movimentavam-se de um lado para o outro, como pássaros em constante alvoroço.

Fui acompanhando as notícias do crescimento de Cabo Verde como novo país e orgulhava-me sempre que os ouvia falar, embora nos anos 1970 as notícias sobre caboverdianos em Portugal (em Lisboa) não fossem muito abonatórias (carregadas de suspeições). Os bairros como a Pedreira dos Húngaros, Buraca, Prior Velho e outros nos arredores de Lisboa e na margem sul, recebiam um grande número de caboverdianos imigrantes que vinham trabalhar na construção civil e nas obras públicas, mas que viviam em condições de habitação bastante precárias (bairros de lata). Em alguns destes bairros, dizia-se que nem a polícia entrava.
Em Cabo Verde a democracia foi-se consolidando, institui-se o multipartidarismo e prevaleceu a alternância democrática no poder. Foi-se afirmando como um país reconhecido pelo exemplo de democracia em África, em grande parte devido à sua estabilidade política e o desenvolvimento social considerável.

Entre as várias vivências que integro, há valores que não hesito, por isso, em reconhecer, de forma evidente e um deles é, claramente, o princípio da autodeterminação dos povos. Passados tantos anos, pensaria que este e outros valores estariam consolidados nas nossas várias culturas, mas não é assim (ainda).

Este facto poderá funcionar como um desafio ao poder das democracias, embora, como disse Winston Churchill e Sérgio Godinho colocou numa canção, "a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros". O regime democrático, com todos os defeitos e desafios continua a ser o regime, conhecido até hoje, que permite melhor exercício de equilíbrios.

Retomando a ideia inicial este é o meu quarto "pê": o gesto de votar é a coisa pequena, pessoal e possível no meu contributo para a mudança.

A liberdade continua a ser um valor pelo qual temos de lutar todos os dias.

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