«SOMOS TODOS CAPITÃES»
O 25 de Abril e a Democracia Portuguesa
50 anos de Democracia - Tarefa inacabada
Quando imaginamos uma pessoa com cinquenta anos, pensamos imediatamente numa fase de consolidação e em maturidade nas opções. Pois, em relação ao cinquentenário da nossa democracia, nesta fase, não podemos afirmar o mesmo. Na verdade, começam a emergir alguns sinais que não podem ser negligenciados.
Pe. Fernando Soares, CM
O cinquentenário da revolução de 25 de Abril, ocorre entre nós e um pouco por todo o mundo, no ano em que somos chamados a exercer um dos direitos conquistados pela Revolução dos Cravos que melhor define uma democracia: eleições plurais e livres. Mas o facto de, livremente, nos podermos expressar no voto, não significa que esteja tudo bem com a democracia. Não está e, talvez, não esteja nunca, pois a democracia é uma tarefa inacabada.
Quando imaginamos uma pessoa com cinquenta anos, pensamos imediatamente numa fase de consolidação e em maturidade nas opções. Pois, em relação ao cinquentenário da nossa democracia, nesta fase, não podemos afirmar o mesmo. Na verdade, começam a emergir alguns sinais que não podem ser negligenciados.
Os sinais de perigo são visíveis, na crescente intolerância com a opinião do outro, na tensão inter-geracional, na xenofobia e, sobretudo, no crescimento do apoio político a figuras autocráticas que testam os limites das normas democráticas. Mas, igualmente preocupante é, por outro lado, sentirmos que os partidos tradicionais não estão a conseguir compreender o descontentamento agitador da arena política e social.
Desde logo, parece-nos um grosseiro erro embarcar no discurso simplista de considerar o voto populista, exclusivamente, como intolerância, racismo, ou apenas insatisfação económica. Os discursos simplistas dos partidos tradicionais e das elites – infelizmente incentivados pela superficialidade e voracidade mediática – revelam sérias dificuldades em compreender a realidade, quando diagnosticam este descontentamento apenas como hostilidade contra os imigrantes, as minorias raciais e étnicas, ou como angústia face à globalização e às mudanças tecnológicas.
Nas queixas populistas não encontramos só reclamação por melhores salários e empregos, encontramos, também, reclamação por estima social. A onda crescente de votos em partidos populistas é, também, a rejeição de uma abordagem tecnocrática da política: manifestamente surda ao descontentamento das pessoas que se sentem, por isso, abandonadas ou enganadas pelas promessas de progresso económico e cultural. Desta onda faz parte, ainda, um claro e irado grito contra décadas de crescentes desigualdades e de opções económicas que beneficiaram aqueles que já estavam no topo, deixando, nos cidadãos comuns uma clara sensação de impotência.
É claro que os líderes populistas têm sabido explorar este manancial de medos, frustrações e queixas. E os partidos tradicionais não têm sabido encontrar respostas convincentes para essas queixas.
Parece-nos que a tarefa de todos os democratas, mas sobretudo daqueles que elegemos como nossos representantes, passa pela coragem moral e cívica de repensarem a sua missão e propósito.
Aprender com os protestos populistas, não reproduzindo, claro está, a sua xenofobia e o seu estridente nacionalismo, mas levando a sério as queixas legítimas que podemos ver entrelaçadas nestes sentimentos moralmente inaceitáveis.
Num livro editado em 1958, intitulado The Rise of the Meritocracy, o sociólogo britânico Michael Young, previu a arrogância e o ressentimento engendrados pela teoria social da meritocracia.
Perguntava-se o que aconteceria se, um dia, as barreiras de classes fossem todas ultrapassadas e todos pudessem desfrutar de uma verdadeira igualdade de oportunidades para poderem progredir na vida com base exclusivamente no seu mérito.
Num primeiro momento, conclui ele, isso seria motivo para celebração, pois, os filhos das classes trabalhadoras poderiam, finalmente, competir de uma forma justa, desenvolvendo os seus talentos, lado a lado com os filhos dos privilegiados.
Mas Young apercebeu-se rapidamente de que isto, na prática, não poderia vir a ser uma vitória abrangente, uma vez que, a organização assente na meritocracia, fomenta e alimenta a arrogância dos “vencedores” e a humilhação dos “perdedores”.
Ou seja, os “vencedores” têm tendência a olhar para o seu sucesso (riqueza) apenas como a “justa recompensa pelas suas capacidades, pelos seus esforços, pelas suas façanhas inegáveis” e, por consequência, olham para aqueles menos bem-sucedidos do que eles – os “perdedores” – com desprezo pelos fracos. Por seu lado, aqueles que não conseguem progredir sentem que a culpa dos seus fracassos se deve unicamente a si próprios.
Para Michael Young, portanto, a meritocracia não é um ideal ao qual valha a pena aspirar, mas uma perigosa receita de discórdia social.
A verdade é que os partidos tradicionais e as elites conduziram o debate político para o âmbito tecnocrático, reservado a especialistas altamente credenciados. Esvaziaram o debate político democrático de sentido e de finalidade. Como se fosse possível transferir o discernimento e juízos morais para os mercados ou para tecnocratas.
Ora, esses vazios de significado público são inevitavelmente preenchidos por formas autoritárias de identidade e de pertença – quer sob a forma de fundamentalismo religioso e/ou de nacionalismo estridente.
Os políticos das últimas décadas, devidamente assessorados pelos tecnocratas altamente especializados e, por isso, pagos a peso de ouro, pensavam que o único problema da globalização impulsionada pelos mercados era tratar da justa distribuição de rendimentos. Mas não previram que aqueles – os “vencedores” – que mais beneficiaram com o comércio global, com as novas tecnologias e com a financeirização da economia, sentem que esses rendimentos são mérito seu e, por isso, não têm de partilhar com aqueles – os “perdedores” – que não conseguiram vencer porque não fizeram tudo o que estava ao seu alcance para chegar ao topo. Ora esta dinâmica é geradora de arrogância, nos primeiros, e de ressentimento, nos segundos.
Nas últimas décadas, à medida que a atividade económica se deslocava da produção industrial para a gestão de dinheiro (financeirização da economia) e que as recompensas distribuídas aos gestores de fundos especulativos, aos banqueiros e às classes profissionais liberais começaram a ser claramente exageradas, a estima conferida ao trabalho no sentido tradicional tornou-se frágil e incerta.
Portanto, cinco décadas de democracia e quatro de globalização orientada para o mercado corroeram o debate público, fragilizaram o cidadão comum e desencadearam uma reação populista que procura revestir a nua esfera pública com o intolerante e vingativo manto de nacionalismo.
Al Smith (1933) dizia que “todas as doenças da democracia podem ser curadas com mais democracia”. Logo, se queremos fortalecer a nossa democracia, temos de saber mandatar os políticos de forma a que eles possam encontrar um caminho para um discurso público moralmente mais atento à dignidade da pessoa e sustentabilidade do Planeta; mais atento à justiça e ao bem-comum, à solidariedade e à subsidiariedade. E, por outro lado, assumam, de forma séria e comprometida, a tarefa de combater os efeitos corrosivos que a competição meritocrática tem sobre o bem-comum e os laços sociais que fazem a nossa vida comunitária.