top of page
townsend-walton-Lma3JuOhAF4-unsplash.jpg

«SOMOS TODOS CAPITÃES»

O 25 de Abril e a Democracia Portuguesa

50 anos de Abril de 74

Continuar a sonhar a liberdade, desejá-la e mantê-la é um compromisso de cada cidadão. Será a liberdade que nos manterá em democracia. Construir a democracia é tarefa de todos, pois ela requer vigilância e empenho.

50 anos de Abril de 74

António Manuel Victória Ribeiro

1. A conjugação de uma diversidade de fatores, conduziu a que em abril de 74 o regime do Estado Novo colapsasse. Foram diversos os protagonistas que conduziram a tal acontecimento, por isso, entendo que é abusivo (e desonesto) algumas pessoas e alguns grupos chamarem para si tal facto, reivindicando a sua propriedade. Abril de 74 não é propriedade de nenhum grupo particular, muito menos de uma pessoa isolada, mas sim fruto do desejo coletivo de uma nação que se queria libertar do aguilhão da subjugação.

Houve, entre os muitos protagonistas, um grupo de pessoas, que deu o seu contributo, para o que veio a acontecer no 25 de abril. Foram os católicos.

O cristianismo tem a capacidade de abarcar dentro de si as mais diversas sensibilidades e conviver com elas. É a pluralidade e a multifacetada figura de Cristo que conduz a este tipo de vivência. Nenhuma Igreja ou ordem religiosa concretiza na totalidade e em plenitude a pessoa do Nazareno, por maioria de razão, nenhuma pessoa, ou grupo de pessoas vive com inteireza a multidimensional personagem de Jesus. Como acontece hoje, também na segunda metade do século passado, os cristãos católicos não se poderão arvorar de proprietários de Cristo ou dizer que vivem plenamente todos os desafios que a pessoa de Jesus lhes coloca. Cada qual, na sua sensibilidade, vive apenas uma dimensão da pluralidade de Jesus Cristo, identificando-se mais com esta ou aquela.

Naturalmente, havia nesses tempos, como há hoje, alguns católicos que se identificavam com a dimensão social e interventiva de Jesus. A sua sensibilidade levou-os a empenharem-se e comprometerem-se com a transformação política da sociedade. Não é maior nem melhor, mais ou menos digno, o compromisso do católico que põe as mãos na massa da transformação social do que a do católico que visita o doente ou do que prepara a liturgia, no zelo pelo templo, ou ainda, do que se dedica ao anúncio pela catequese.

2. Nas décadas de sessenta e setenta do século passado houve, em Portugal, um grupo de católicos, que pela sua sensibilidade e formação académica, se tornaram sensíveis aos atropelos gritantes que eram cometidos pelo regime do Estado Novo. A sua capacidade de entendimento, o conhecimento que tinham de alguns documentos do magistério, especialmente, o pensamento social da Igreja, levou-os a uma atitude reivindicativa e ao compromisso com o Evangelho, que a esmagadora maioria da população portuguesa não tinha.

Eles conheciam e leram as Encíclicas Rerum Novarum, de Leão XIII, a Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a Populorum Progressio de Paulo VI e a Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Segundo Concílio do Vaticano, que lhes deu ferramentas e critérios para a sua intervenção política e social. Tornam-se, deste modo, defensores da justiça e da paz, acima de tudo, na defesa da pessoa humana em todas as dimensões da existência.

Infelizmente, para Portugal em geral e para a Igreja Católica em particular, isto era um privilégio de muito poucos, dado que a maioria da população portuguesa era analfabeta, logo excluída de qualquer leitura e reflexão do que quer que fosse.

Foi este contexto que viu surgir alguns homens e mulheres católicas, uma pequena elite (não elitista), que com base no cristianismo que professavam, ousaram enfrentar o regime, com determinadas ações na promoção da dignidade das pessoas e no respeito por elas. Estes grupos situavam-se geograficamente em algumas urbes de Portugal, especialmente, em Lisboa. Homens como António Alçada Batista, João Bernard da Costa ou Pedro Tamen, ou mulheres com Maria de Lourdes Pintassilgo foram alguns dos protagonistas deste movimento, que procurou consciencializar as populações para o compromisso com a sociedade e com a pessoa, a partir da leitura do Evangelho. Foram intelectuais que se empenharam em ler os “sinais dos tempos”, com consciência cívica e sentido de responsabilidade, comprometidos que estavam com os homens e mulheres do seu tempo. Não tinham filiação partidária, porque queriam permanecer pessoas livres, tal como recusaram a formação de um Partido Democrata-Cristão, porque entenderam que não devia haver uma política cristã.

Houve também clérigos que apontaram caminho, propondo um modelo alternativo ao vigente em Portugal. Nos anos 40-50 o Pe. Abel Varzim, nos anos 60-70 destacaram-se o Pe Felicidade Alves e o Pe. Alberto Neto. Estes homens foram âncoras, estímulo e incentivo, para que alguns católicos se sentissem estimulados a prosseguir com empenho a transformação do mundo que os rodeava.

3. Entre outros acontecimentos, podem-se destacar três, para compreender, como uma parte dos católicos se empenhou na mudança de regime, comprometendo-se com a “Polis-Cidade”, exercendo uma cidadania responsável e propondo modelos alternativos assentes no diálogo e na abertura a todos.

O primeiro é o lançamento da Revista de Pensamento e Ação, “O Tempo e o Modo”. Lançada em 1963, pretendeu ser um espaço de diálogo entre católicos e outros meios culturais. Das muitas temáticas ali tratadas pode-se ressaltar a questão do apostolado dos leigos, a participação política dos católicos e o diálogo da Igreja com a cultura. “O Tempo e o Modo” foi um pórtico de abertura para algo de novo que começou a surgir no catolicismo português.

O segundo acontecimento pode ser dividido em dois momentos cronológicos. Em 1968, no dia 31 de dezembro, a vigília de oração pela paz na igreja de São Domingos em Lisboa. Um grupo de católicos, inspirado na mensagem do Papa Paulo VI para o Dia Mundial da Paz intitulada “A Promoção dos Direitos do Homem, Caminho para a Paz”, convocou este tempo de oração, dada a situação em que o país se encontrava, especialmente, devido à guerra colonial.

De algum modo esta vigília inspirou uma outra que ocorreu em 1972 na Capela de Nossa Senhora da Bonança, conhecida como Capela do Rato. Um pequeno grupo de católicos convocou para os dias 30 e 31 de dezembro de 1972 um tempo de oração e jejum, tendo como foco a contestação à guerra colonial. Também este grupo parte da Mensagem para o Dia Mundial da Paz, do Papa Paulo VI, cujo lema é “A Paz é Possível”. A este pequeno grupo inicial juntaram-se centenas de pessoas. Entre outros objetivos, a pretensão deste grupo foi, também, a propaganda. Pretenderam com este gesto trazer para a agenda pública o debate acerca das colónias, o seu direito à autodeterminação e a guerra que aí ocorria. Na verdade, conseguiram-no. A Capela do Rato é rodeada pela polícia, que entra no Templo e prende diversas pessoas, entre elas os Padres António Janela e Armindo Garcia. Isto teve um grande impacto na opinião pública nacional e internacional.

O terceiro acontecimento foi a publicação pela Conferência Episcopal Portuguesa de uma Carta Pastoral para assinalar os dez anos da publicação da encíclica Pacem in Terris. Esta encíclica, essencialmente, redigida por D. António Ribeiro, Patriarca de Lisboa, corroborou o que o Papa João XXIII nela veiculou, os direitos e os deveres do Homem. Nesta Carta Pastoral foi dito: “Ao olhar para o mundo contemporâneo, no qual a Igreja se encontra e age, não pode ela permanecer indiferente perante múltiplas situações de injustiça que impedem o correto desenvolvimento dos homens, tais como: a condição infra-humana em que tantos vivem, diminuídos por graves carências alimentares, habitacionais, sanitárias, de emprego, educacionais e culturais; a existência de limitações, não raro injustificadas, ao pleno exercício dos direitos e garantias fundamentais das pessoas e dos grupos... Não tem a Igreja, enquanto comunidade religiosa e hierarquicamente organizada, competência para oferecer soluções concretas aos problemas que hoje se põem no domínio económico, social, cultural e político. Mas “os membros da Igreja, enquanto membros da sociedade civil, têm o direito e o dever de procurar o bem comum, com os demais cidadãos” (Sínodo dos Bispos, 1971)» (CEP, Carta Pastoral no décimo aniversário da Pacem in Terris, 4 de maio de 1973. DP, 113-114).

Continuar a sonhar a liberdade, desejá-la e mantê-la é um compromisso de cada cidadão. Será a liberdade que nos manterá em democracia. Construir a democracia é tarefa de todos, pois ela requer vigilância e empenho.

Hoje os desafios são outros, os protagonistas também. A nós cabe-nos, como cidadãos, continuar esta construção iniciada em abril de 74, aperfeiçoá-la e robustecê-la, para continuarmos a construir um Portugal mais inclusivo, mais tolerante e mais justo.
Nós cidadãos católicos temos a responsabilidade da fraternidade, porque estamos comprometidos com o Evangelho.

bottom of page