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Mulher com a Bíblia

REFLEXÃO DOMINICAL

XII DOMINGO DO TEMPO COMUM - ANO A

Não tenhais medo

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Fernando Soares

Padre Vicentino

Quem já se não lembra da irresponsável e inconsciente descida de skate do, depois disso, famoso Hélio e a sua repentina passagem do confiante “…o medo é uma cena que a mim não me assiste”, ao assustado e hilariante: “sai da frente, ó Guedes…”? 
Lembrei-me disto porque, na verdade, o medo, com intensidade e consequências diferentes, é uma “cena que nos assiste a todos”. É muito mais comum do que imaginamos. Socialmente, sabemos que, muitas vezes, é visto como sinal de fraqueza ou covardia. Mas não tem de ser assim. Sendo uma reação involuntária e natural está associado ao instinto de sobrevivência. Funciona como travão que nos ajuda a pensar nos riscos e consequências antes de agir.

 

Na dose certa ajuda a tomar consciência das nossas vulnerabilidades e, por isso, fazer crescer a humildade e emergir o sentido de responsabilidade. 
As sociedades modernas sempre conviveram com o medo, fazendo dele uma forma de comunicação. No entanto, esta pandemia veio trazer coisas novas. De repente, apercebemo-nos de que desta vez não foi um simples acaso que nos atingiu. A pandemia não é um terramoto, inesperado e momentâneo. E por mais que, inicialmente, as metáforas da guerra tenham sido usadas, a pandemia não é uma guerra, com exércitos ordenados e territórios conhecidos. O que mais atemoriza é que aqui o medo somos nós, é a nossa doença. A doença torna o nosso próprio corpo o foco do inconcebível. Desta vez, o perigo não vem das profundezas dos mares ou terras ou de um exército invasor. Desta vez, sem o sabermos, o perigo podemos ser nós, os portadores do mal e, com isso, começar a sentir pavor uns dos outros. E, no meio de tantas incertezas, uma coisa já podemos ter certo: mesmo se… e quando… esta pandemia for superada ela deixará sempre em nós uma herança de vulnerabilidade e saudável consciência de que “somos todos iguais! Todos frágeis! Todos preciosos!” (Papa Francisco). 

 

Confesso que começo a sentir que algum receio de que as máscaras nos impeçam de olhar para os rostos assustados dos nossos irmãos com medo da doença, medo da crise social e económica; medo do futuro sem programa; medo de perder a espontaneidade dos afetos e a alegria da convivência humana… medo de um novo confinamento, etc…
No evangelho deste XII domingo do tempo comum podemos escutar um consolador e encorajante: “não tenhais medo!” Em toda Escritura Sagrada, este convite-ordem tem sempre um tom vocacional, isto é, definidor de uma missão para a vida toda. Não temais é forma que Deus usa para se manifestar e falar a todos os que chama: foi assim com Abraão, com Moisés, com os profetas e com Maria, através do Anjo. No trecho do Evangelho deste Domingo não é diferente. No discurso missionário, por altura do envio dos discípulos para a primeira missão apostólica, também os encoraja com um “não temais”. 

 

Infelizmente, na opção litúrgica omitiu-se o trecho Mt 10,9-25, no qual Jesus faz, aos seus Doze Apóstolos, apelos claros de radical despojamento – sem ouro, nem prata, nem cobre, nem alforge, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado, nem pão; “apenas” levar Paz. E porque “o discípulo não é maior do que o mestre” (Mt 10, 24-25), também os previne para as perseguições e dificuldades que, no anúncio do Reino, poderão ter de enfrentar. Ora, o que Jesus diz aos Doze di-lo, igualmente, a todos nós. 
Na difícil tarefa de anúncio, hoje como ontem, os discípulos de Jesus encontram desconfiança, fechamento, hostilidade e rejeição. Nessas situações, muitas vezes, a tentação é silenciar a esperança que vive no coração, permanecer calado e esconder a identidade, quem sabe, até desistir. Mas Jesus adverte: o tempo da missão é um tempo de apocalipse, não no sentido catastrófico geralmente atribuído a esse termo, mas no sentido etimológico de revelação, de levantar o véu. Isto é, a proclamação do Evangelho exige que o que foi vivo na intimidade com o Mestre, seja proclamado em plena luz do dia, o que foi dito ao ouvido seja gritado nos telhados. Pois, como nos questiona o Papa Francisco: “Um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria?” (Evangelii gaudium, 264)

 

Com efeito, os verdadeiros inimigos dos discípulos e da missão, em muitas ocasiões, não são os de fora, mas os de dentro: por um lado, as tentações que surgem do coração e, por outro, as atitudes idolátricas às quais, como comunidade cristã, vamos cedendo. 
Então Jesus olha para o seu Deus e Pai e testemunha todo o poder com que Ele cuida das suas criaturas, as salva, nunca abandonando aqueles que O seguem. O que são dois pardais? Essas pequenas criaturas que vivem às centenas nos telhados, parecem-nos criaturas insignificantes, que não merecem atenção ou cuidado, mas não é assim para Deus! De tal contemplação, surge a confiança que afasta o medo: Deus vê como um pai nos vê. Ele olha para nós com amor e nunca nos abandona, mesmo quando caímos. Os discípulos de Jesus, muito mais preciosos aos olhos de Deus do que os pardais e os cabelos da cabeça, podem ser perseguidos e mortos, mas mesmo em sua morte o Pai está lá; em suas tentações, o Senhor está lá, em seus sofrimentos, ele é. 

 

Na verdade, a comunhão com o Senhor não pode ser quebrada, exceto por nós mesmos, nunca pelos outros. Por esse motivo, é necessário estar preparado para reconhecer Jesus, o Senhor, diante dos homens: isso deve ser feito com mansidão, com ternura, sem arrogância e sem orgulho e, sobretudo, com entrega sem reservas. 
Hoje, embora aqui e ali comecem a surgir sinais não muito animadores, no mundo ocidental, não corremos o risco de perseguição, de ter que escolher entre o testemunho de Cristo ou a vida, mas não nos devemos iludir de que estamos isentos de julgamento. Sempre que ficamos envergonhados por poder ser identificados como batizados; sempre que não temos coragem de testemunhar a verdade cristã; sempre que não estamos do lado da defesa da vida, da humanização da sociedade, da justiça, da paz e da caridade; sempre que silenciamos o “clamor da terra e dos pobres; sempre que cedemos ao indiferentismo e não inscrevemos um filho na disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica, e na catequese, etc… optamos por não ser reconhecidos por Jesus, no dia do julgamento, diante do Pai que está no céu. Mas se Deus, nosso Pai, conta e cuida dos passarinhos e dos cabelos da nossa cabeça, quanto mais fará sentir a sua providência sobre nós. É na confiança em Deus que radica a coragem serena do “discípulo missionário” de Jesus a falar claro à luz do dia ou sobre os telhados e em todas as circunstâncias. O discípulo missionário tem sempre pela frente o risco do mundo e da vida.

 

Por fim, mesmo sendo “o medo uma cena que nos assiste” a melhor maneira de o vencer é arriscar a vida pela vida, que é como quem diz: arriscar a vida por Jesus, nomeadamente, no Jesus que se diz nos pobres e mais abandonados. E, quando o medo nos assaltar, não deixemos de rezar como o fizemos na oração colecta: “Senhor, fazei-nos viver a cada instante, no temor e no amor do Vosso Santo nome, porque nunca a Vossa Providência abandona aqueles que formais solidamente no Vosso amor”. Ámen.

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