A promessa*
Contemplando o espaço desde a cruz alta, o olhar do peregrino olha em redor e impressiona-se com aquela mulher de joelhos ligados, a quem outra mulher acompanha; suspira de alívio ao comparar-se com aquela família que traz um filho adulto e com uma deficiência bem visível
Inês Espada Vieira
14 de agosto de 2020
Na esplanada da Cova da Iria, no santuário de Fátima, brilha ao sol e à chuva uma fina faixa de lajes brancas que rasga o recinto em direção à Capelinha das Aparições. À noite, os candeeiros fazem um pesponto de luzes em volta e há sombras que se estendem fugazes no chão. Às vezes está muito frio, às vezes o sol queima. Às vezes há muita gente, noutras somos só dois ou três.
Contemplando o espaço desde a cruz alta, o olhar do peregrino enche-se de infinito e ignora o certo despropósito da arquitetura italianizante da Basílica de Nossa Senhora do Rosário. Sabe que tem atrás de si a nova Basílica da Santíssima Trindade e não perde muito tempo a pensar se aprecia a sua contemporaneidade. Numa visita anterior, reparou nas estátuas dos papas peregrinos de Fátima, Paulo VI e João Paulo II, e lembra-se que a coroa de Nossa Senhora tem cravada a bala que não matou o santo papa polaco num dos atentados de que foi alvo.
Contemplando o espaço desde a cruz alta, o olhar do peregrino não se perde. Conhece bem o recinto. Sabe ao que vem e ao que veio outras vezes. Veio tantas vezes a Fátima, que nem se recorda bem da cronologia das viagens. Nunca houve a primeira vez, porque desde que se conhece que Fátima esteve com ele. Contou-lhe a avó, veio pela mão dos pais, assistiu na televisão, viajou um dia numa camioneta com toda a freguesia. Já pôs muitas velas a Nossa Senhora. Ali, do lado esquerdo, mesmo ao pé da Capelinha, esperou, para ter a certeza de que a sua vela não se apagava, entre tantas outras; hesitou, nas vezes em que a pira consome indiscriminadamente as velas dos peregrinos.
Traz na carteira um santinho da Jacinta, guardado entre o cartão da caixa, o bilhete de identidade, e a cautela da lotaria popular que certamente não lhe vai mudar a vida, mas lhe dá naqueles dias um outro sorriso. A Jacinta, tão bonita, com o laço grande e o olhar sério. Mas, sozinho com os seus botões, reza ao Francisco. O terço que traz no bolso já foi benzido muitas vezes pela televisão. Não costuma rezar o terço todo, mas guarda-o na mesa de cabeceira, ao lado das aspirinas e dos lenços brancos bordados com a inicial.
Contemplando o espaço desde a cruz alta, o olhar do peregrino olha em redor e impressiona-se com aquela mulher de joelhos ligados, a quem outra mulher acompanha; suspira de alívio ao comparar-se com aquela família que traz um filho adulto e com uma deficiência bem visível; sente as dores do homem de boina que caminha curvado para o lado que se apoia na bengala; reconhece outras nacionalidades nos cabelos loiros, peles brancas e roupas claras do grupo encostado ao corrimão de um dos acessos; ouve o sussurro do roçar das roupas de quem circula à volta da imagem de Nossa Senhora na Capelinha as Aparições.
Ele olha a esplanada, vê os outros, conhece o lugar, sabe com quem está.
Mas, sobretudo, sabe ao que vem e ao que veio outras vezes.
Veio por uma promessa. Ou melhor, por duas promessas: a que ele fez e essa promessa que nasceu há dois mil anos e que, em Fátima, se aproximou dele e o tocou para sempre.
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* Artigo inicialmente publicado na Revista Mensageiro de Santo António em abril de 2017