A pandemia já acabou?
Certo dia, talvez numa bonita manhã de Primavera, informaram o Julião do encerramento do Centro Social. Era a pandemia. Sem perceber as razões desta decisão, decidiu abominar a pandemia. E tinha boas razões para o fazer...
João Pires Silva
16 de dezembro de 2020
«Não quero! Não quero ir para aquela casa! Não tenho lá nenhum amigo». A teima do Julião não era muito diferente da dos outros utentes do Centro Social que, sem alternativa, eram entregues aos cuidados da Santa Casa da Misericórdia.
Nem o paternal tutor conseguiu convencer o Julião da natureza temporária daquelas alterações; enquanto durar a pandemia. Julião não percebeu, também porque não quis perceber. Eram de dor as expressões estampadas no seu rosto, ao mesmo tempo que usava o escasso vocabulário de que dispunha para verbalizar pungentes apelos de salvação. Ninguém o pôde socorrer.
O Centro Social cessava temporariamente os seus serviços de acolhimento presencial e, a partir daí, gizaram-se urgentes soluções individuais. Encerrava-se aquele oásis de partilha de ambiguidades, polo de uma comunidade solidária - os que pouco têm e pouco pedem. A culpa era da pandemia.
Até então, o Julião tinha podido usufruir de tempos felizes. Durante o dia cirandava à vontade pelos espaços e pelos logradouros do Centro Social; durante a noite, abrigava-se numa outra organização de acolhimento de desvalidos, nas redondezas.
Pelo raiar das manhãs, quanto o tempo estava de feição, o Julião descia a Estrada da Luz e saudava ruidosamente qualquer pessoa com quem se cruzasse. Alardeava os seus contentamentos jubilosamente, encaminhado-se, em passos atabalhoados, para o Centro Social. Ali, esperava-o o pequeno-almoço, preparado pelo “Chefe”, um amigo incomparável que amavelmente o adoptara. O Julião dependia do “Chefe” para quase tudo: era ele quem o orientava nos afazeres; era ele quem o protegia das más companhias e dos maus encontros, era ele quem lhe guardava o curto pecúlio, constituido por algumas moedas (notas, nem tanto) que ia recebendo, em troca de recados que efectuava. O Julião não conhecia o valor do dinheiro; sabia, no entanto, que as moedas escuras valiam menos que as outras. Logo que recebia tais estipêndios, rejubilava exuberantemente e corria a entregá-los ao “Chefe”.
O Julião sentia-se verdadeiramente reconhecido por poder cumprir ligeiras missões que estivessem ao seu alcance. Revelava-se especialmente eficaz para levar cartas aos correios ou para reservar um lugar de estacionamento. No primeiro caso, passava à frente de toda a gente; no segundo, que ninguém ousasse ocupar-lhe o lugar: a compleição física agigantada, o tom das expressões que proferia (quase imperceptíveis quando se irritava) e o aspecto cenhoso que o seu rosto irradiava, dissipavam quaisquer tentativas de contrariar os seus intentos. Fora disso, era um cidadão cordato e inofensivo.
O Julião não sabia a própria idade, nem o dia em que fazia anos. Porém, quando o informavam da aproximação da data do seu aniversário tresloucava, como se fora uma criança. E convidava qualquer conhecido que passasse, para provar o bolo que, no Centro, lhe haveriam de preparar. Era sempre um bolo especial: decorado com os emblemas do Benfica e do Sporting. O Julião dizia-se adepto do Benfica, mas não enjeitava aplausos ao Sporting, quando convinha ao seu interlocutor. Ainda assim, delirava quando lhe ofereciam uma camisola do Benfica: uma prenda que selava a perenidade de uma amizade.
O Julião nasceu antes da Paróquia de São Tomás de Aquino, em espaços já então marcados pelas periferias. Oriundo duma família de escassos recursos. Por aqui viveu a sua meninice e juventude, auxiliando no arrumo de carros ou simplesmente apelando à caridade dos vizinhos que, a dado passo, decidiram instituir um “fundo aberto”, domiciliado numa pastelaria/restaurante do Bairro, para custear as refeições do Julião. Mais tarde, foi no Centro Social que pôde encontrar o conforto que, provavelmente, jamais tivera. Claramente, era ali que se sentia bem.
Desde criança que as manifestações das suas incapacidades se tornaram evidentes. O Julião sempre careceu de tutoria, formal ou informalmente. Fosse para a gestão das suas condutas primárias, fosse para proteger os escassos bens ou direitos de que era titular, fosse para o transportar aos serviços de saúde, para a aquisição de remédios ou ainda para o orientar na posologia dos medicamentos. Tudo isto o Centro Social lhe proporcionava.
Certo dia, talvez numa bonita manhã de Primavera, informaram o Julião do encerramento do Centro Social. Era a pandemia. Sem perceber as razões desta decisão, decidiu abominar a pandemia. E tinha boas razões para o fazer: a pandemia iria impedi-lo de descer a Estrada da Luz nas manhãs luminosas da Primavera e do Verão, de tomar o pequeno-almoço com o “Chefe”, de saborear os acepipes que lhe serviam ao almoço, de celebrar os seus aniversários com muitos amigos. Inconscientemente. Julião fez-se eco das lamúrias surdas de todos os utentes que, no Centro Social, polarizavam as suas esperanças.
A odiosa pandemia serviu ainda para justificar o encerramento da organização onde Julião pernoitava e, por fim, o seu enclausuramento num prédio habitacional e ruidoso, donde tão-pouco se pode escapulir.
«Não quero ficar nesta casa! Não tenho cá nenhum amigo». O Julião não se conforma com as privações que lhe coartam todas as liberdades. Continua, por isso, a proferir vitupérios contra a pandemia.
Ansioso, não passa um dia que não pergunte às colaboradoras do Lar onde agora se sente confinado: «A pandemia já acabou?». Para sua desdita, as senhoras, tão cansadas da maleita como ele, já nem lhe respondem.