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Presépio partido

O Natal era a época do ano que o professor Samuel mais apreciava: os cânticos, as luzes, as lareiras, as festas em família e, para lá de todos estes aspectos profanos, o nascimento do Menino... do seu Menino Jesus. O presépio fascinava-o. Tratar-se-ia, por certo, da memória de Natais anteriores: talvez com os pais, irmãos e avós, e a textura do ambiente acolhedor desse marsúpio familiar, onde sempre ancorou o desenvolvimento de todos os seus projectos; talvez com a esposa e com os filhos ainda pequenos, em fase de consolidação dos valores que procurou imprimir ao seu paradigma familiar; talvez com outros amigos a quem solidariamente procurara suavizar carências e solidões, partilhando saberes e haveres, de cuja posse se assumia mero usufrutuário. Verdadeiramente, o Natal era para o professor Samuel uma época propícia à convocação de nostalgias, mas também à inspiração para impulsos de maior convivência fraterna, favorecendo desígnios de transformação das pessoas... do mundo.

Ainda assim, o professor Samuel polarizava todos estes intentos na verdadeira fonte, donde brota a água pura: o Menino. O Menino que nascera pobre e desnudado das superficialidades mundanas, porém destinado a ser o Caminho, a Verdade e a Vida.

Na área científica a que se dedicara, o professor Samuel era um erudito de nomeada. Considerado mesmo uma sumidade, tanto no plano nacional, como internacional. Por isso, era frequentemente requisitado: fosse para ministrar cursos em universidades ou fóruns da especialidade, fosse para palestrar em conferências altamente seleccionadas, fosse para exarar pareceres tendentes a dirimir intrincadas questões científicas, ou ainda para a apreciação de trabalhos académicos de notória envergadura. O professor Samuel era, com efeito, considerado um dos maiores vultos da sua geração no domínio da formação e especialidade académicas por que everedara.

Não obstante, quem tivesse o privilégio – uma honra, verdadeiramente – de privar com ele, desconhecendo a sua dimensão intelectual, sentia-se de tal modo emparelhado que o julgaria um igual. O professor Samuel era mesmo assim. Incapaz de denunciar quaisquer sinais de distanciamento, em relação a quem quer que fosse. O paradigma dos Evangelhos – era um católico assumidamente comprometido – a moldar a matriz dos seus pensamentos e a nobreza das suas condutas. Especialmente nas relações que entabulava com outros interlocutores no seio da paróquia a que pertencia, o professor Samuel apoucava-se frequentemente, dispondo-se a tarefas que, com compreensível cerimónia e justificada hesitação, lhe fossem solicitadas: «Era o que faltava. Pois claro que estou disponível», asseverava com determinação.

Quando o professor Samuel era convidado para proceder a uma ou outra leitura nas Eucaristias, a proclamação da Palavra ganhava então acrescida acutilância e ainda mais dignidade; a interpelação era mais veemente. Usando dotes de oratória que, por certo, a cátedra lhe terá inculcado, imprimia sonoridades, dicções e ênfases aos textos sagrados que, dessa maneira, melhor se adentravam no íntimo dos demais participantes na liturgia.

E o seu sorriso! Tão mais cativante e acolhedor quanto a benignidade das palavras que normalmente o acompanhavam. Apenas comparável ao deleite dos avós com disponibilidades permanentes e ilimitadas para acolher os netos.

Entretanto, as eruditas capacidades do professor Samuel começaram a ficar toldadas por força de maleitas irreversíveis. Uma vez por outra, ainda elabora coerências inteligíveis e reveladoras da sua sólida cultura; contudo, na maior parte das situações, já se lhe nota uma gramática com raciocínios dissonantes e diálogos desconexos, perdendo-se em delírios enredados no nevoeiro dos falsos pensamentos - a sua lucidez e sapiência a esfumarem-se gradualmente.

E fora na penumbra dessas divagações que, perscrutando através da janela do quarto onde se encontra retido, pôde vislumbrar duas criaturas débeis e alquebradas (homens?, mulheres?; não logrou distingui-los) que, no lusco-fusco daquele fim de tarde fria de Dezembro, vasculhavam eventuais utilidades num caixote do lixo, no outro lado da rua. As silhuetas espalharam a esmo latas, caixas e sacos já vazios. Entrementes, uma das figuras verbalizou exuberâncias: «Olha, olha!». E ostentou um troféu: um presépio partido que fora deitado no caixote do lixo. Com aparente desvelo, as criaturas foram reunindo as imagens: o Menino Jesus sem cama e, certamente, com as pernas e os braços mutilados, e Maria e José molestados com semelhantes malfeitorias. Ainda assim, presumiu o professor Samuel, estava lá, incólume, todo o simbolismo do presépio. E as duas criaturas continuavam a exteriorizar júbilos pelo achado. Teriam finalmente um presépio para celebrar o seu Natal?, interrogou-se o professor. Não o pôde saber.

Finalmente, as duas figuras, aparentemente felizes, perderam-se na friagem e na obscuridade da noite. Então, o professor Samuel, na profundeza dos seus sábios devaneios, supôs outros paradigmas de exaltação do Natal: ele, mercê da idade e das maleitas, imobilizado no seu leito de dependência; lá fora, os dois desafortunados, deambulando pelas ruas desertas, ansiariam pela possibilidade de poderem usufruir de algumas sobras da voragem de consoadas fartas; e aquele presépio partido a suscitar a celebração do Natal. E entre sombras e silêncios, aconteceu Natal. Um Natal diferente.

Presépio partido
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