A arte como ato e coragem*
Há histórias de coragem que não se contam em gestos intrépidos ou ações destemidas, em lugares longínquos ou diante de situações de exceção. Há uma coragem do quotidiano que se revela, por exemplo, em atos de resistência à implacável ameaça da monotonia, da solidão, da ignorância, ou em pequenos atos de partilha de afeto, de compreensão, de presença.
Há também a coragem de remar contra a maré, quando ela é feita de vagas de falta de empatia, de acomodação, quando a maré encurta o horizonte e limita a possibilidade da viagem.
Poderíamos falar sobre vários âmbitos, mas hoje quero referir-me concretamente àquilo que, creio, é uma necessidade imperiosa do nosso tempo, como, aliás, o foi sempre ao longo dos tempos: a necessidade do Belo, a procura de alguma coisa sem utilidade imediata, que não sirva para satisfazer nenhuma urgência material – ou sequer espiritual, porque a resposta espiritual da arte não se compadece com ânsias ou urgências, mas é antes a oportunidade que temos de trazer o vagar para os nossos dias apressados.
Sejamos claros, ponhamos os pés na terra de desequilíbrios e contrastes que é a da nossa humanidade: a educação para o Belo, o reconhecimento da arte como elemento essencial das nossas vidas é atributo de poucos, privilegiados que somos por ter as necessidades básicas de sobrevivência tratadas e por ter tido uma educação estética, ainda que informal.
Visitamos museus do mundo, ocupamos as tardes de fim-de-semana a ver uma exposição temporária, conhecemos as coleções mais importantes do país. Mas nem todos podem entender a arte porque se trata de uma linguagem que precisa de ser aprendida, nem todos sentem o movimento de aproximação para a procurar e, assim, fazer dos espaços comuns da sociedade lugares para a arte é uma missão de educação cívica fundamental, exercida num domínio público, secular, mas também no âmbito religioso. No mesmo sentido, proporcionar o encontro do indivíduo com o Belo é um gesto de misericórdia porque é um modo de encurtar o caminho para o encontro consigo próprio e, em última análise, é um modo de encurtar o caminho que nos leva a Deus.
As reflexões do Papa Francisco sobre a arte, publicadas no final de 2015, propõem gestos concretos de aproximação: «Os museus […] devem escancarar as portas às pessoas de todo o mundo. Ser um instrumento de diálogo entre as culturas e as religiões, um instrumento de paz. Serem vivos. Não poeirentas recolhas do passado apenas para os "eleitos" e os "sábios", mas uma realidade vital que saiba proteger esse passado para o contar aos homens de hoje, a começar pelos mais humildes».
Francisco lembra-nos que o passado deve ser protegido para poder ser transmitido às pessoas do presente. Concretizado nas obras de arte que, ao longo dos séculos, revestiram e embelezaram as igrejas como forma de evangelizar, mas igualmente como testemunha da vida dos homens, ter consciência desse passado é também um modo de sentir-se digno, de ter consciência de si como parte de um grupo com uma identidade comum.
Num mapa de tantos caminhos, a arte é a “via da beleza” e preparar essa via para que possa ser trilhada por outros é um gesto de dádiva e de coragem. A Paróquia a que pertenço, São Tomás de Aquino, em Lisboa, levou a cabo um projeto de revestimento das paredes do presbitério da igreja com uma obra de Ilda David. As cerca de duzentas mil pequenas pedras que constituem os painéis são uma espécie de metáfora dos fiéis, convidados a participar nesta obra com a sua pedra que, agora e para sempre, está simbolicamente nas paredes que rodeiam o altar da vida.
No dia 9 do passado mês de outubro, na inauguração dos painéis, o Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, lembrou que, na sua dimensão interpretativa, a obra de arte é um modo do artista dar glória a Deus, garantindo também aos presentes, que “quanto mais olhar[mos] estas linhas essenciais, mais glória dare[mos] a Deus”. Atrevo-me a dizer: quanto mais andarmos por esta via da beleza, mais perto estaremos de Deus.
Nos tempos que são os nossos, em que alguns discursos fáceis e acomodados calculam logo, em preço e hierarquia, a despesa para cuidar “dos pobres”, a coragem de investir em arte (ainda por cima, em arte contemporânea que, naturalmente, não vem ainda com o “livro de instruções” que o tempo se encarregará de conceder) é remar contra a maré. O valor da arte não se mede só em euros, como por vezes as notícias sobre um certo leilão ou uma surpreendente oferta de compra querem fazer crer. Aliás, no longo prazo da História, o valor da arte não tem que ver com o que ela custa, mas com essa dialética essencial entre o ser(-se) humano e o estar no mundo.
Ser corajoso é uma forma de estar no mundo.
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* Artigo publicado pela primeira vez na Revista Mensageiro de Santo António em novembro de 2016