«SOMOS TODOS CAPITÃES»
O 25 de Abril e a Democracia Portuguesa
Por uma Educação comprometida com a Vida e a Democracia
Em um momento em que, no mundo, assistimos perplexos, inertes, a guerras e formas de violência as mais brutais; em que nós brasileiros refletimos sobre a história, a memória e os desdobramentos do fim do Golpe Civil-Militar de 31 de março de 1964 e nossos irmãos portugueses sobre as conquistas que decorrem de 25 de abril de 1974, não há como desconhecer que os enormes e complexos desafios do tempo histórico em que vivemos nos convocam.
Sandra Cavalcante
No campo da educação, em todos os níveis e contextos, enfrentamos uma realidade sociocultural, local e global, marcada por polarizações políticas que se revelam de diferentes maneiras: pela negação da ciência; pela contestação de direitos universais; por um intencional processo de desinformação; por guerras insanas, que se concretizam pelo morticínio de mulheres e crianças; pelo deslocamento forçado de milhões de pessoas pelo planeta; pelas diferentes formas de violência estrutural que estão na base da pobreza e da fome em todos os sentidos. No quintal midiático das nossas casas (rádio, TV, internet), todos os dias, nós nos deparamos, em carne e osso, com a morte (re)vestida sob nomes como racismo, machismo, homofobia, xenofobia e tantos outros.
Essa realidade, vivida dentro e fora dos limites das nossas escolas, nos convoca a assumir um compromisso coletivo com a formulação de perguntas e a busca de respostas que nos permitam mudar algo que insiste em se apresentar como previsível, natural. Aos olhos de alguns, esse compromisso, implicado no ato de fazer muitas perguntas e, para cada uma delas, de buscar novas respostas, certamente, será compreendido na pauta da impertinência. Isso, no entanto, não deve nos atrasar em nosso compromisso histórico, com a defesa da vida e da democracia.
Aprendemos e ensinamos todo tempo, em todo lugar, de forma planejada, intencional e, também, de maneira espontânea, não raro despretensiosa, informal. Essas muitas formas de aprendizagem se manifestam na maneira mais ou menos (des)respeitosa como nossos olhos se cruzam em ruas e praças, como circulamos em parques e museus, na forma como vivemos, com maior ou menor nível de gentileza, na grande ou pequena cidade em que moramos. Sendo assim, a aprendizagem inclui, também, a maneira mais ou menos sensível e acolhedora, crítica e criativa, desconfiada ou autoritária com que nossas crianças e adolescentes são recebidos para se apropriarem de antigas e novas formas de conhecimento, nos tempos e espaços escolares.
Em um momento em que, no mundo, assistimos perplexos, inertes, a guerras e formas de violência as mais brutais; em que nós brasileiros refletimos sobre a história, a memória e os desdobramentos do fim do Golpe Civil-Militar de 31 de março de 1964 e nossos irmãos portugueses sobre as conquistas que decorrem de 25 de abril de 1974, não há como desconhecer que os enormes e complexos desafios do tempo histórico em que vivemos nos convocam. Somos convocados, como cristãos, a (re)afirmar, todos os dias, um profundo e inegociável compromisso com a vida e, nessa medida, com a democracia.
Neste exato momento, bate à nossa porta a necessidade de (re)discutir, criticamente, princípios e valores que nos orientem para um projeto de educação que coloque a vida, em suas múltiplas dimensões, no centro das relações sociais. Nas palavras de Paulo Freire, ao pensar a indissociável relação entre Política e Educação, precisamos trabalhar por “um mundo menos feio, em que as desigualdades diminuam, em que as discriminações de raça, de sexo, de classe sejam sinais de vergonha e não de afirmação orgulhosa”, trabalhar por “um sonho sem cuja realização a democracia de que tanto falamos, sobretudo hoje, é uma farsa”. Dessa maneira, talvez possamos responder, de forma concreta, ao chamado do Papa Francisco para o desafio da “amizade social”, uma forma de “sonhar e pensar numa outra humanidade” (Fratelli Tutti).
Esse projeto exige de cada um de nós o compromisso com a curiosidade ingênua, natural e também a epistêmica, revelada por um olhar que estranha, que pergunta, que investiga, que desconfia, que procura. Exige de nós a criatividade estética e pragmática, manifestada na busca de soluções para problemas reais; na arte de criar cenários possíveis, de encenar, de fabular, de poetar, de musicar, de narrar em diferentes linguagens e mídias. Uma sociedade que opta por uma educação comprometida com a democracia reconhece o diálogo, o direito à palavra oral e escrita, em diferentes linguagens, como força motriz da própria vida. Assim sendo, assume a defesa da dignidade humana e do meio ambiente como faces da liberdade, da autonomia, da emancipação social de todos aqueles que, de perto e de longe, falando a nossa língua ou uma língua distante, integram a nossa comunidade.
Neste exato momento, em diferentes lugares do mundo, há um movimento concreto, realista que, esperamos muito, ecoe, se amplie, aprofunde. Muitas são as experiências sociais que podemos destacar, em diferentes contextos e situações, com um mesmo objetivo: o de uma educação comprometida com a vida, com o desenvolvimento humano, com a democracia. Essas experiências incluem coletivos que criam bibliotecas, grupos de teatro, de dança, de música, de produção de vídeos; coletivos que oferecem cursos comunitários para a aprendizagem de uma nova língua, para a formação profissional, para a criação de pequenos empreendimentos, para acesso à universidade; coletivos que acreditam e trabalham pelo processo de reintegração social de homens e mulheres que, por diferentes motivos, se encontram em regime prisional; coletivos que defendem os direitos dos animais; coletivos formados por cidadãos comprometidos com a transformação de espaços públicos degradados em hortas e pomares e com a criação de outros tantos espaços que traduzam os valores e as necessidades da comunidade. Cada um desses projetos nos permite reconhecer a concreta possibilidade de tornarmos nossa cidade, nosso bairro, nossas ruas e praças, nossa redes digitais, em territórios sociais marcados pela busca de (re)significar o ato de aprender.
Se dedicarmos um pouquinho da nossa atenção à busca do novo, que sempre nasce no meio de nós, podemos nos abrir para o encontro com valores e iniciativas comprometidos com uma participação efetiva e democrática na vida social. Nas ruas e nas redes, neste exato momento, podemos aprender a (re)ler e a (re)escrever juntos o mundo que nos cerca. Nesse ato de ler o mundo – social e comunitariamente – poderemos aprender a (re)conhecer juntos os avanços e conquistas, as contradições e retrocessos do tempo-espaço histórico em que vivemos.
Esse compromisso, sonho de muitos que nos antecederam nesta vida, certamente, não cabe ou se acomoda nos limites impostos pelos muros da escola ou pelas quatro paredes de uma sala de aula. Em diálogo com as palavras de Ailton Krenak, só assim, poderemos “adiar o fim do mundo”.