A celebração desta solenidade não nos pode deixar indiferentes. Na verdade, reconhecer que o nosso reino é o do Senhor Crucificado leva-nos a viver um estilo de vida muito concreto. “Um reino eterno e universal: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz” (Prefácio da Missa).
Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo
Quando esta Festa foi instituída, em 1925, viviam-se tempos conturbados: entre a primeira e a segunda guerras mundiais, com o fascismo em Itália, o estalinismo na Rússia e o nazismo a surgir na Alemanha. Era um contexto em que também o ateísmo, a secularização e o laicismo alastravam. O papa Pio XI instituiu-a como tentativa de promoção do reino social de Cristo e da militância católica para ajudar a sociedade a revestir-se dos valores cristãos. Com a reforma litúrgica pós-conciliar, o Papa Paulo VI colocou-a como Solenidade no final do ano litúrgico, dando-lhe um alcance escatológico e universal, a sublinhar que toda a história e o universo estão orientados para Cristo.
A verdade é que o próprio título “Cristo Rei e Senhor do Universo” dá que pensar, pois pode levar a mal-entendidos. Ao longo dos séculos e, mesmo nos nossos tempos, não têm faltado erradas interpretações da realeza de Cristo e do seu Reino, conduzindo a Igreja e os seus membros a falsos triunfalismos e evidentes desvios do Evangelho.
Procuremos nas Leituras que a Liturgia da Palavra nos oferece o verdadeiro sentido da realeza de Jesus.
A primeira, do profeta Daniel (7,13-14) apresenta um “Filho de Homem”, vindo entre as nuvens, a quem é entregue o poder, a honra e a realeza, com todos os povos, nações e línguas a servi-lo, num poder eterno, que jamais passará e num reino que não será destruído. O Novo Testamento identifica este Filho de Homem com Jesus e o seu Reino, como aparece na leitura seguinte do Apocalipse.
Nesta leitura (Ap 1,5-8), Cristo é a Testemunha fiel, o Ressuscitado e “príncipe dos reis da terra, que nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai”. Ele é o princípio e fim de tudo, “Aquele que é, que era e que há-de vir, o Senhor do Universo, a quem deve ser dada a glória e o poder pelos séculos dos séculos”.
No Evangelho do dia, segundo S. João (18, 33b-37), Jesus afirma claramente, perante o governador Pôncio Pilatos, a sua realeza: “É como dizes: sou rei”. Mas o seu reino não é como os reinos da terra: “não é deste mundo… não é daqui”. Nasce e cresce no serviço â Verdade, pelo Testemunho à Verdade, que passa pelo abaixamento da Encarnação, pela contínua identificação e compaixão de amor pela humanidade, num coração manso e humilde, carregando as fragilidades e pecados do mundo até à Paixão e à morte na Cruz, para a todos libertar e conduzir à Ressurreição. Não é Rei na lógica dos homens, na lógica do domínio e da glória, mas na lógica do serviço e do amor.
Aprofundemos um pouco mais o sentido da realeza de Cristo e do seu Reino.
À pergunta de Pilatos “Tu és o rei dos Judeus?, Jesus responde: “É por ti que o dizes, ou foram outros que to disseram de mim?”. Pode acontecer que não poucas vezes façamos uma profissão de fé correta e digamos que Jesus é rei. Mas, é essa a nossa opinião pessoal? É isso que experimentamos na nossa vida? É Jesus o verdadeiro Senhor, o rei da minha vida e da minha existência? Muitas vezes dizemos que Jesus é o Senhor e o Rei porque é o que ouvimos e nos ensinaram. Contudo, continuamos a ser escravos de outros senhores e de outros valores anti-humanos que nos roubam a dignidade. As coisas seriam tão diferentes e melhores se o senhor da minha vida fosse verdadeiramente o Senhor Jesus!
Continuando o seu diálogo com Pilatos, Jesus afirma: “O meu reino não é deste mundo”. Tal afirmação de Jesus apesar de ser de fácil compreensão é de difícil aceitação. Todos sabemos que a forma de Jesus exercer a sua realeza é bem diferente da forma dos senhores deste mundo exercerem o seu poder. Se os senhores deste mundo procuram que os outros os sirvam e servem-se dos outros para alcançar a satisfação dos seus desejos e aspirações, o Senhor Jesus viveu servindo os outros até ao ponto de oferecer a sua vida na cruz. Compreendemos que foi assim que Jesus viveu a sua realeza. No entanto, é-nos difícil aceitar isto, porque não poucas vezes sentimo-nos tentados a viver a realeza de Jesus à maneira humana e não à maneira de Jesus. “Não há nada mais longe da imagem do discípulo do Crucificado do que uma Igreja tranquila e segura, forte graças aos seus próprios meios e às suas influências” (Bruno Forte).
Jesus afirma ainda que a sua missão como Rei é dar testemunho da verdade: “É como dizes: sou Rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade.” Para S. João a verdade é a realidade de Deus. Assim sendo, Jesus é rei na medida em que manifesta nas suas palavras, gestos e atitudes quem é Deus. Mais uma vez fica bem claro que é na sua Paixão que Jesus dá o maior testemunho da verdade, ou seja, da realidade de Deus. Com efeito, “Deus é amor” (1 Jo 4, 16) e é pelas obras do amor afetivo, efetivo e concreto aos pecadores, aos mais pobres e sofredores, como o viveu S. Vicente de Paulo e tantos outros santos e santas, que seremos fiéis seguidores de Cristo, Rei e Senhor..
A celebração desta solenidade não nos pode deixar indiferentes. Na verdade, reconhecer que o nosso reino é o do Senhor Crucificado leva-nos a viver um estilo de vida muito concreto. “Um reino eterno e universal: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz” (Prefácio da Missa). A Igreja e cada um dos cristãos são chamados a construir este reino. Reconhecer a realeza de Cristo na cruz compromete-nos com a construção do reino. Não basta rezar no Pai-Nosso “venha a nós o vosso reino!”. É necessário que eu aceite este reino na minha vida pessoal e assim o vá dilatando na vida social.
O Papa Francisco realçava recentemente um outro aspeto significativo: “Esta celebração recorda que a vida da criação não avança ao acaso, mas dirige-se para uma meta final, a manifestação definitiva de Cristo, Senhor da história e de toda a criação”. Tal deve levar-nos a grande serenidade e confiança, pois “acima do poder político existe outro muito maior, que não é alcançado por meios humanos. Cristo veio à Terra para exercer esse poder, que é amor, dando testemunho da verdade (Angelus, 25/11/18).