Algumas considerações sobre a teologia negativa e a arte
“No final, a experiência ultrapassa a obra, e esta passa a ser uma experiência connosco mesmos. Ela somente abre passagem, desobstrui o caminho. Não nos é dada alternativa, senão a de tomarmos nós próprios a posição da pergunta, encarnarmos esse lugar interrogativo.”
Carolina Serrano
22 de setembro de 2021
Susan Sontag (1933-2004), no seu ensaio “A Estética do Silêncio”, vai comparar a tendência ‘negativa’ da arte moderna do século XX, que espelha também modos destrutivos e de rasura, à actividade do místico, no âmbito da teologia negativa ou apofática.
Pseudo-Dionísio, o Areopagita, autor de obras cruciais para a mística cristã ocidental entre os séculos V e VI, apresentou ao mundo uma teologia bipartida: uma positiva, ou catafática, e uma negativa, ou apofática. Estas duas vias representam duas alternativas para o conhecimento de Deus, sendo que a primeira, a teologia positiva, ou catafática, adopta uma posição afirmativa, na medida em que admite a conaturalidade entre a divindade e as perfeições mais elevadas que se encontram nas criaturas. Por outro lado, a teologia negativa ou apofática, defende que Deus está para além de todo o nome, pois é indizível e intraduzível por palavras, não pode ser descrito, apenas apresentado. Logo, se Deus é incognoscível e “a actividade do místico deve culminar numa via negativa, numa teologia da ausência de Deus, numa ânsia da névoa de desconhecimento além do conhecimento, e do silêncio além do discurso, a arte deve tender à antiarte, à eliminação do ‘tema’ (do ‘objecto’, da imagem), à substituição da intenção pelo acaso, e à busca do silêncio”. (1)
Tanto Anish Kapoor (1954) como Yves Klein (1928-1962), como Ad Reinhardt (1913-1967), são artistas que parecem ir de encontro a esta Teologia negativa ou apofática, a via que considera o Divino inefável e indefinível e que, portanto, pretende compreender Deus por aquilo que ele não é:
- Deus nem é isto, nem aquilo.
Para o pintor Ad Reinhardt, que considera que a presença da forma equivale à ausência da Unidade, enquanto a ausência da forma equivale à presença de Unidade, a tonalidade dos seus quadros negros parece ir de encontro com uma negação e uma desmaterialização. Se a ascensão para a escuridão é para ele mística, a linguagem da negatividade é aquela que se aproximará mais da kenosis, de um despojamento e de uma simplicidade que se encontra somente na austeridade e na ausência.
Na sua obra “La Vide” (1958), Yves Klein esvaziou a Galeria Iris Clert, em Paris, e pintou-a de branco para que as pessoas pudessem entrar dentro da obra, em contacto directo com o seu vazio. Em “Le Saut dans le vide” (1960) ou “Salto no vazio”, uma foto-montagem, podemos observar o artista a saltar de braços esticados de encontro a uma rua vazia, de encontro ao nada.
A maioria das esculturas de Anish Kapoor são para serem observadas de frente. Os seus vazios são encarados de forma centrada, focada.
A frontalidade é característica de toda a arte icónica e, neste sentido, as esculturas de Kapoor podem ser iluminadas pelo pensamento da ‘economia’ do ícone reanimada na arte moderna, logo no princípio do século, pelas pinturas e pelo pensamento de Wassily Kandinsky (1866-1944) e de Kazimir Malevich (1879-1935). Estes pintores russos equipararam a pintura moderna ocidental ao ícone oriental e medieval. Assim, encontraram no ícone – as imagens através das quais se reza e através das quais, pela contemplação, se almeja a comunhão com Deus – a encarnação do poder espiritual: “os ícones são janelas através das quais o espiritual pode ser experienciado na matéria. Eles disciplinam a visão enquanto olhamos o mundo através dos olhos da fé”(2). Neste sentido, a economia do ícone pode fornecer um fundamento importante para repensar a arte moderna e contemporânea, a partir da ideia de que essa economia opera numa esfera que é profundamente sacramental, na qual o transcendente é mediado através do imanente e é reconhecido, experienciado e contemplado através de meios materiais.
As esculturas de Kapoor habitam nesta ambiguidade entre polaridades, neste quase equívoco. Se à partida parecem condenadas a falhar, tal a aparente impossibilidade desta desejada presença omniforme, no entanto, para o escultor, lutar contra a impossibilidade parece ser um paralelo directo para as suas ideias sobre Deus - Aquele que é intangível, Aquele que ninguém pode ilustrar, fazer ou mandar fazer. Para o artista, só podemos remotamente referirmo-nos a Ele e, somente assim, perante esta inexequibilidade, a arte poderá ser feita. E é por isso que nunca poderá ser concluída. Estará sempre incompleta.
Fazendo uma procura maternal da escuridão e do vazio, juntamente com a ideia de expurgar a “objectualização” do objecto, as suas esculturas bem poderiam ser uma missão quase mística pela busca do equivalente imaterial do material, porque esvaziar é também encher. Esvaziar é possibilitar a encontrar abrigo nas formas vazias.
O espectador na presença dessas obras de Kapoor, oscilando entre o que poderá ser a ilusão do espaço e a criação do vazio, parece hesitar perante a incerteza se o espaço que vê é real ou ilusório, bidimensional ou tridimensional, negro ou esvaziado, assumindo a inquietante consciência da imperfeição dos sentidos. Interrogamo-nos se a escuridão para a qual estamos a ser levados, se essa ‘noite’ que nos absorve, que nos ‘puxa’ para dentro, está lá, na concavidade, no buraco escavado, na pedra talhada, ou se transcende a obra. Durante esse período de dúvida e de incerteza da resposta, surge uma desorientação – ou reorientação – e o tempo parece abrandar, ou até mesmo suspender a realidade. Esses vazios escuros são lugares de devaneio, de absorção, de um certo despojamento interior, introspectivo. No final, a experiência ultrapassa a obra, e esta passa a ser uma experiência connosco mesmos. Ela somente abre passagem, desobstrui o caminho. Não nos é dada alternativa, senão a de tomarmos nós próprios a posição da pergunta, encarnarmos esse lugar interrogativo. Deixar o mistério viver, não o importunar. Porque no fundo, esse vazio nem é real nem é ilusório, não nos dá nenhuma resposta clara e final. Ele não se encontra no lado certo de nenhuma polaridade. Ele está simplesmente no meio, entre tudo o que é oposto, na colisão dos antagonismos, quem sabe, de encontro à origem.
(1) SONTAG, Susan – A estética do Silêncio. in A Vontade Radical : Estilos. Trad. João Roberto Martins Filho. São Paulo : Editora Schwarcz, 2015, p.12.
(2) SIEDELL, Daniel A. – God in the Gallery : A Christian Embrace of Modern Art. Grand Rapids : Baker Academic, 2008, p.83 [tradução livre]